sábado, outubro 14, 2006

Porque a solidão é oficina de ideias...

(Cezanne)


Teoria do Medalhão (continuação)


- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
-Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
- Como assim, se também é um exercício corporal?
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excecionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados ao taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
-Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras.Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa,quando não prefiras interrogar directamente os leitores habituais das belas crónicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses-suponhamos dois anos,- reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas,sem cores de clarim...
-Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
- Podes;podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocados jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento.Caveant consulesé um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalado-a numa frase nova, original e bela,mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustradas na memória individual e pública.Estas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil.Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o passado. Quanto à utilidade deum tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal.Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosas de documentos e observações, análise das causas propáveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos e desvarios.Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!-E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada do pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.(Cont)

1 comentário:

  1. Adorei a matéria!Geralmente é quando estamos sozinhos q as idéias mais inusitadas vem
    à nossa cabeça!parabéns!

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