A teoria do medalhão (cont)
Supõe que desejas saber porque motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica.Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e a descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo o caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
- Farei o que puder.Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
-Nenhuma filosofia?
-Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc,etc.
- Também ao riso?
-Como ao riso?
-Ficar sério, muito sério...
- Conforme.Tens um génio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez.Medalhão não quer dizer melancólico.Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente,- e este ponto é melindroso...
-Diga...
-Somente não deves empregar ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não.Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se lhe mete pela cara dos outros, estala como a palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior.Vamos dormir, que é tarde.Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Princípe de Machiavelli.Vamos dormir.
Machado de Assis
Obrigado por me dar a conhecer este conto. Não resisti à espera e fui à procura do desfecho há já alguns dias. Fiquei dividido entre a maravilha e o horror. Primeiro por causa da extrema perspicácia do autor, depois por ter sido escrito há cento e vinte anos. Estaria Machado de Assis avançado para a sua época ou terá a humanidade entrado em regressão? O facto é que os medalhões se generalizaram...
ResponderEliminarE não será que sempre existiram os medalhões? Eu diria que sim. Que há na natureza humana aspectos mortíferos que vivem de relações parasitárias,num total desrespeito pelo Outro, desconhecendo completamente a possibilidade de relações de genuina cooperação.Uma longa conversa esta! Obrigada pelo comentário estimulante.
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