sexta-feira, outubro 27, 2006

Não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade...



A teoria do medalhão (cont)

Supõe que desejas saber porque motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica.Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e a descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo o caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
- Farei o que puder.Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
-Nenhuma filosofia?
-Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc,etc.
- Também ao riso?
-Como ao riso?
-Ficar sério, muito sério...
- Conforme.Tens um génio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez.Medalhão não quer dizer melancólico.Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente,- e este ponto é melindroso...
-Diga...
-Somente não deves empregar ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não.Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se lhe mete pela cara dos outros, estala como a palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior.Vamos dormir, que é tarde.Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Princípe de Machiavelli.Vamos dormir.

Machado de Assis

2 comentários:

  1. Obrigado por me dar a conhecer este conto. Não resisti à espera e fui à procura do desfecho há já alguns dias. Fiquei dividido entre a maravilha e o horror. Primeiro por causa da extrema perspicácia do autor, depois por ter sido escrito há cento e vinte anos. Estaria Machado de Assis avançado para a sua época ou terá a humanidade entrado em regressão? O facto é que os medalhões se generalizaram...

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  2. E não será que sempre existiram os medalhões? Eu diria que sim. Que há na natureza humana aspectos mortíferos que vivem de relações parasitárias,num total desrespeito pelo Outro, desconhecendo completamente a possibilidade de relações de genuina cooperação.Uma longa conversa esta! Obrigada pelo comentário estimulante.

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