Carta de um pintor a seu filho (1)
Meu querido filho,
Escreves-me contando que pintas uma madona e que o que sentes em relação à conclusão desse trabalho te parece tão impuro e carnal que sempre que vais para pegar no pincel gostarias de receber a comunhão para santificar o teu sentimento.Deixa que este teu velho pai te diga que se trata de uma falsa sugestão que te se grudou vinda da escola donde provéns, e que, segundo os ensinamentos dos nossos veneráveis mestres de outro tempo, é inteiramente aceitável o facto de pores na tela os produtos da tua imaginação com um gozo lúdico que pode ser comum, mas quanto ao mais é honrado. O mundo é uma instituição estranha; e os efeitos mais divinos, meu querido filho, nascem das causas mais baixas e modestas. O homem, para te dar um exemplo que salta à vista, é decerto uma criatura sublime; contudo, no instante em que traçamos as suas formas, não é preciso considerar esse princípio com particular santidade. Na verdade, aquele que começasse por comungar e que de seguida se pusesse a trabalhar sem outra coisa que não fosse o propósito de dar corpo sensível ao seu conceito de homem produziria infalívelmente um ente miserável e débil; pelo contrário, aquele que, numa serena noite de Verão, beija uma rapariga, sem outras preocupações, traz ao mundo, sem dúvida, um rapaz que mais tarde trepará vigorosamente entre o céu e a Terra e dará que fazer aos filósofos. E com isto, adeus.
y.
(Heinrich Von Kleist- Sobre o Teatro de Marionetas e outros escritos. Tradução e apresentação José Miranda Justo.Antígona)
Meu querido filho,
Escreves-me contando que pintas uma madona e que o que sentes em relação à conclusão desse trabalho te parece tão impuro e carnal que sempre que vais para pegar no pincel gostarias de receber a comunhão para santificar o teu sentimento.Deixa que este teu velho pai te diga que se trata de uma falsa sugestão que te se grudou vinda da escola donde provéns, e que, segundo os ensinamentos dos nossos veneráveis mestres de outro tempo, é inteiramente aceitável o facto de pores na tela os produtos da tua imaginação com um gozo lúdico que pode ser comum, mas quanto ao mais é honrado. O mundo é uma instituição estranha; e os efeitos mais divinos, meu querido filho, nascem das causas mais baixas e modestas. O homem, para te dar um exemplo que salta à vista, é decerto uma criatura sublime; contudo, no instante em que traçamos as suas formas, não é preciso considerar esse princípio com particular santidade. Na verdade, aquele que começasse por comungar e que de seguida se pusesse a trabalhar sem outra coisa que não fosse o propósito de dar corpo sensível ao seu conceito de homem produziria infalívelmente um ente miserável e débil; pelo contrário, aquele que, numa serena noite de Verão, beija uma rapariga, sem outras preocupações, traz ao mundo, sem dúvida, um rapaz que mais tarde trepará vigorosamente entre o céu e a Terra e dará que fazer aos filósofos. E com isto, adeus.
y.
(Heinrich Von Kleist- Sobre o Teatro de Marionetas e outros escritos. Tradução e apresentação José Miranda Justo.Antígona)
(1) No Archiv fur Literatur, Kunst und Politik, de 27 de Junho de 1810, relatava-se uma suposta conversa entre um jovem pintor e Rafael; o jovem pintor pergunta a Rafael como começa o quadro quando quer pintar uma madonnna; a resposta do mestre é a seguinte« Também eu não sei ao certo. Se quero pintar a mãe de Deus, rezo sempre para que ela me apareça, e é assim que ela me aparece». Também é voz corrente que o pintor se recolhia em oração antes de começar a pintar. Kleist desenvolve aqui uma perspectiva nitidamente crítica em relação a essa atitude.
É por isso que os pintores estão mais perto de "Deus" do que os padres do deserto e os eremitas...
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