Acordei na penumbra. Não sabia onde estava nem que horas eram. Fiz um esforço, como quem procura orientar-se. Lembrei-me: estava no meu quarto, no Hotel Central. Nessa altura, ouvi o mar.
Acendi a luz. Vi no meu cronógrafo - junto dos volumes de Chiron, de Kent, de Jahr, de Allen e de Hering, sobre a mesinha-de-cabeceira de pinho- que eram cinco da tarde. Pesadamente, comecei a vestir-me. Que descanso ver-me livre da rigorosa indumentária que os convencionalismos da vida urbana nos impõem! Como evadido da roupa, enfarpelei a minha camisa escocesa, umas calças de flanela, o meu casaco de linho cru, o amarrotado panamá, as velhas galochas amarelas e a bengala com punho de cabeça de cão. Baixei os olhos, com disfarçada satisfação examinei no espelho a minha alta testa de pensador, e concordei uma vez mais com tanto observador imparcial: a semelhança entre as minhas feições e as de Goethe é autêntica. Por outro lado, não sou um homem alto; para o dizer com um vocábulo sugestivo, sou baixote- os meus humores, as minhas reacções e os meus pensamentos não se extenuam nem se esgotam ao longo de uma dilatada geografia. Prezo-me de ter uma cabeleira agradável à vista e ao tacto, de possuir umas mãos pequenas e bonitas, de ser breve nos punhos, nos tornozelos, na cintura. Os meus pés, «frívolos viajantes», nem quando durmo descansam. A pele é branca e rosada; o apetite, perfeito.
Apressei-me. Queria aproveitar o primeiro dia de praia.
Como essas recordações de viagens que se apagam da memória e que depois encontramos no álbum de fotografias, no momento de aliviar as correias da minha mala vi-pela primeira vez?-as cenas da minha chegada ao hotel. O edifício branco e moderno, pareceu-me pitorescamente encravado na areia: como um navio no mar, ou um oásis no deserto. A falta de árvores estava compensada por umas manchas verdes caprichosamente distribuídas- dentes-de-leão, que pareciam avançar como um réptil múltiplo, e rumorosas estacas de tamargueira. Ao fundo da paisagem havia duas ou três casas e uma outra cabana.
Já não estava cansado. Senti como que um êxtase de júbilo. Eu, o doutor Humberto Huberman, tinha descoberto o paraíso do homem das letras. Nesta solidão, em dois meses de trabalho, concluiria a minha adaptação de Petrónio. E então..., um coração novo, um homem novo. Teria, finalmente, chegado a hora de procurar outros autores, de renovar o espírito.
Furtivamente avancei por escuros passadiços. (...)
(Silvina OCampo & Adolfo Bioy Casares- Quem ama, odeia)
Acendi a luz. Vi no meu cronógrafo - junto dos volumes de Chiron, de Kent, de Jahr, de Allen e de Hering, sobre a mesinha-de-cabeceira de pinho- que eram cinco da tarde. Pesadamente, comecei a vestir-me. Que descanso ver-me livre da rigorosa indumentária que os convencionalismos da vida urbana nos impõem! Como evadido da roupa, enfarpelei a minha camisa escocesa, umas calças de flanela, o meu casaco de linho cru, o amarrotado panamá, as velhas galochas amarelas e a bengala com punho de cabeça de cão. Baixei os olhos, com disfarçada satisfação examinei no espelho a minha alta testa de pensador, e concordei uma vez mais com tanto observador imparcial: a semelhança entre as minhas feições e as de Goethe é autêntica. Por outro lado, não sou um homem alto; para o dizer com um vocábulo sugestivo, sou baixote- os meus humores, as minhas reacções e os meus pensamentos não se extenuam nem se esgotam ao longo de uma dilatada geografia. Prezo-me de ter uma cabeleira agradável à vista e ao tacto, de possuir umas mãos pequenas e bonitas, de ser breve nos punhos, nos tornozelos, na cintura. Os meus pés, «frívolos viajantes», nem quando durmo descansam. A pele é branca e rosada; o apetite, perfeito.
Apressei-me. Queria aproveitar o primeiro dia de praia.
Como essas recordações de viagens que se apagam da memória e que depois encontramos no álbum de fotografias, no momento de aliviar as correias da minha mala vi-pela primeira vez?-as cenas da minha chegada ao hotel. O edifício branco e moderno, pareceu-me pitorescamente encravado na areia: como um navio no mar, ou um oásis no deserto. A falta de árvores estava compensada por umas manchas verdes caprichosamente distribuídas- dentes-de-leão, que pareciam avançar como um réptil múltiplo, e rumorosas estacas de tamargueira. Ao fundo da paisagem havia duas ou três casas e uma outra cabana.
Já não estava cansado. Senti como que um êxtase de júbilo. Eu, o doutor Humberto Huberman, tinha descoberto o paraíso do homem das letras. Nesta solidão, em dois meses de trabalho, concluiria a minha adaptação de Petrónio. E então..., um coração novo, um homem novo. Teria, finalmente, chegado a hora de procurar outros autores, de renovar o espírito.
Furtivamente avancei por escuros passadiços. (...)
(Silvina OCampo & Adolfo Bioy Casares- Quem ama, odeia)
Com o mar na minha frente tudo fez mais sentido. Um beijo.
ResponderEliminarHá sempre um certo descanso que nos é necessário.
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