Retrocedendo de volta ao autocarro, parei numa aldeola para beber qualquer coisa. O contraste entre passado e presente era tremendo, como se o segredo da vida se tivesse perdido. (...)Não estou a pensar nos confortos que lhes faltavam, pois no respeitante a conforto não faço grande distinção entre a vida de um camponês grego, um coolie chinês e um trabalhador emigrante americano pau para toda a obra. No que estou a pensar agora é a falta daqueles elementos essenciais da vida que tornam possível uma genuína sociedade de seres humanos. A grande falta fundamental, que é evidente em toda a parte no nosso mundo civilizado, é a ausência total de alguma coisa parecida com uma existência comunal. Tornámo-nos nómadas espirituais; seja o que for que diga respeito à alma é desprezado, atirado de um lado para o outro pelos ventos como destroços e restos. A aldeia de Hagia Triada, vista de qualquer ponto do tempo, sobressai como uma pedra preciosa de coerência, integridade, sentido. Quando uma miserável aldeia grega, como aquela de que estou a a falar e de que temos milhares semelhantes na América, embeleza a sua mísera e imbecilizada vida com a adopção do telefone, rádio, automóvel, tractor, etc., o significado da palavra comunal torna-se fantasticamente deturpado que começamos a perguntarmo-nos o que se pretende dizer com a expressão «sociedade humana». Não há nada de humano nestas aglomerações esporádicas de seres; eles estão abaixo de qualquer nível de vida que este globo tenha conhecido. São menos, em todos os aspectos, do que os pigmeus, os quais são verdadeiramente nómadas e se movimentam em sórdida liberdade com deliciosa segurança.
(Henry Miller- O Colosso de Marroussi)
(Henry Miller- O Colosso de Marroussi)
Não se pode usufruir do conforto do progresso e negá-lo aos outros em nome de uma qualquer ideia de uma pureza que só o atraso permite!
ResponderEliminarÀ falta de palavras minhas, peço ajuda a um grande poeta... beijos!
ResponderEliminarDavid Mourão-Ferreira, Romance de Cnossos
Este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que não o ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
in As Lições do Fogo, Lisboa, D. Quixote, 1976, pp. 68-70