sexta-feira, junho 09, 2006

Receber na nossa casa, ao caír da noite, um convidado...

( Cassat)

Um Mestre de Leitura


Ramin Jahanbegloo- Ontem falámos da sua vida.Hoje gostaríamos que falássemos do seu trabalho. Como o define? É um filólofo, um crítico literário ou um leitor do nosso mundo?

George Steiner- Gostaria de ser recordado - por pouco que perdure nas memórias- como um mestre da leitura, como alguém que passou a vida a ler com os outros. Para conhecermos bem o acto de leitura, devemos servir-nos das análises muito finas de Charles Péguy que deu na sua obra o exemplo de uma definição em filigrana e densa, intensa e cheia daquilo que uma leitura bem feita implica.É uma leitura que implica uma responsabilidade, e neste termo contém-se o de resposta. Trata-se portanto de responder a um texto, à presença e à voz de outrem. E isso tornou-se difícil senão impossível numa cultura onde o ruído é constante, que não tem de reserva uma prata de silêncio ou sequer de paciência. Entendo a paciência na sua acepção do sec XVII, quando a etimologia prevalecia em certas fórmulas, dando a "paciência" ou a "sofrer" um sentido que hoje se desvanece. Ler não é sofrer, mas falando com propriedade, estarmos prontos a receber em nossa casa um convidado, ao caír da noite. A imagem que os grandes poetas sugerem, e também emerge em Heidegger ou nos pensadores pré-socráticos, é a de um acolhimento aberto ao pensamento, ao amor e ao desejo dos outros, através da prática da leitura, da audição da música e do conhecimento da arte. Trata-se de aprender com os outros a escutar melhor. É por isso que o ensino me foi sempre indispensável quando em várias ocasiões teria podido, materialmente falando, abandoná-lo. Mas na organização da minha existência, procurei-o sempre como um meio de reunir leitores à minha volta, para poder conservar a esperança de que depois da minha morte outros continuem a amar os poetas e os filósofos que tanto amei(...)
Trata-se de corrermos o risco de que uma noite, um texto, um quadro, uma sonata, batam á porta da nossa morada- o meu livro Presenças Reais foi todo ele construído em torno desta imagem- quando é possível que o convidado destrua e incendeie a casa inteira. Pode ser também que nos roube e a deixe vazia! Mas temos de aceitar tomar o texto dentro de nós, e não sei como dizer a riqueza dessa experiência que vivi mil vezes, nomeadamente ao ler a Ética , de Espinosa, que é para mim uma referência última. Leio todos os dias Héraclito e certos poetas modernos como Paul Celan, e ainda quando talvez não compreenda bem os textos, aprendo-os de cor para que façam parte integrante do meu ser. A obra de súbito acolhe-me, sem se explicar e eu acedo finalmente ao poema(...).
O meu voto mais querido seria ter passado a minha vida a ler, a ler no sentido mais amplo do termo, como em inglês se pode dizer I read a symphony, incluindo no ler as belas artes e a música. Toda a minha obra assenta na apreensão das vozes que se aproximam de mim. É por isso que escrevo na primeira linha de Tolstoi ou Dostoiewski que toda a verdadeira crítica é um acto de amor. É deste modo que me oponho às disciplinas modernas, sejam críticas, académicas, desconstrucionistas ou semióticas. Aos meus olhos, toda a boa leitura retribui uma dívida de amor.

Ramin Jahanbegloo ( Quatro entrevistas com George Steiner ) Fenda edições

2 comentários:

  1. Também já recebi o Steiner como meu convidado, quase em presença real.
    Gostei muito deste texto.

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  2. Para alguns, por vezes, são o único diálogo reconfortante que conseguem ter!

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