sábado, junho 17, 2006

Amo o Vermelho...e apesar disso a flor que eu amo é branca...



Febre vermelha

Rosas de vinho!abri o cálice avinhado,
Para que em vosso seio o lábio meu se atole:
Beber até cair, beber até o último gole!

Rosas de sangue!abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagai! deixai-as transbordar!
Às ondas como o Oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ofélias de luar...

Camélias!entreabi os lábios de Eleonora,
Desabrochai, à lua, a ânsia do vosso cálix!
Dá-me o teu génio, dá! ó túlipa de aurora!
E dá-me o teu veneno,ó rubra digitális!

Papoilas!descerrei essas bocas vermelhas,
Apagai-me esta sede estonteadora e cruel:
Ó favos rubros! os meus lábios são abelhas,
E eu ando a construir meu cortiço de mel.

Rainúnculos!corai minhas faces de terra!
Que seja sangue o leite e rubis as opalas!
Tal se vêem pelo campo, em seguida a uma guerra,
Tintos da mesma cor os corações e as balas!

Chagas de Cristo! abri as pétalas chagadas,
Numa raiva de cor, numa erupção de luz!
Escancarai a boca,às vermelhas risadas,
Cancros de Lázaro!Feridas de Jesus...

Flores em brasa! Orgãos de cor! Tirava
Óperas de oiro, pudesse eu, das vossas teclas.
Vulcões de Maio! ungi minha pele de lava!
Dai-me energia, audácia, ó pequeninos Heclas!

Dai-me do vosso sangue, ó flores! entornai-o
Nas veias do meu corpo estragado e sem cor
Que vida negra! Foi escrito, à luz do raio,
O triste fado que me deu Nosso Senhor.

Cismo já farto de velar minha alma doente,
Não dura um mês sequer, minhas amigas, vede!
Mas, mal vos vejo, então, pulo alegre e contente
A uivar, como os leões quando os ataca a sede!

Corto o estrelado Céu, voo através do Espaço,
Cruzo o Infinito e vou rolar aos pés de Deus,
Como se acaso fosse, em catapultas de aço,
Por um Titâ de bronze atirado a esses céus!

Amo o Vermelho.Amo-te , ó hóstia do sol-posto!
Fascina-me o escarlate, os meus tédios estanca:
E apesar disso, ó cruel histeria do Gosto
Miss Charlotte, a flor que eu amo, é branca...


António Nobre (Leça,1886)

2 comentários:

  1. Tenho o "SÓ" sempre a jeito lá em casa. Sempre que "preciso"... é um livro em que me recolho. É um livro triste de uma verdade única e forte, mas também de uma ternura imensa.
    Preciso de o folhear de vez em quando.

    ResponderEliminar
  2. é um belo poema.gstava de entender o seu significado

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos