quarta-feira, maio 31, 2006

Por ela é que saio do tom...

(Neisa Mc Mein)

Luisa

Francis Hime - Chico Buarque
1979

Por ela é que eu faço bonito
Por ela é que eu faço o palhaço
Por ela é que saio do tom
E me esqueço no tempo e no espaço
Quase levito
Faço sonhos de crepon

E quando ela está nos meus braços
As tristezas parecem banais
O meu coração aos pedaços
Se remenda prum número a mais

Por ela é que o show continua
Eu faço careta e trapaça
É pra ela que faço cartaz
É por ela que espanto de casa
As sombras da rua
Faço a lua
Faço a brisa
Pra Luisa dormir em paz

Chico Buarque

terça-feira, maio 30, 2006

Nasces no deserto das minhas mãos...



O NASCIMENTO

Nasces no instante em que tomo
consciência de estar só

Nasces no deserto das minhas mãos
no espaço que separa as coisas
umas das outras nasces renasces
no mar que se visita ó sabor do sol
de olhos abertos

Nasces no instante em que tomo
nas mãos o peso da morte o peso
deste pobre movimento que nos vem
do centro da terra ó vinho ó repouso
infinito


Casimiro de Brito

domingo, maio 28, 2006

UM DOMINGO COM CECÍLIA MEIRELES

(Renoir)

Vôo

Alheias e nossas as palavras voam.



Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.



Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.



Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as
palavras voam.
E às vezes pousam.

Cecília Meireles

quinta-feira, maio 25, 2006

Um pouco de mar no jardim...



Vista

Um pouco de mar no jardim:
exactamente do tamanho
do lago no chafariz.



SEN NO RIKYÛ (1521-1591)

A cada instante me vejo renascendo...

(Leonardo da Vinci)

Do amor XXXV

Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E degustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto. Túlio, faz-se um Tempo

Imperecível, justo
Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para frente:
Indescritível, recortada, fixa.

Hilda Hilst

terça-feira, maio 23, 2006

Foi precisamente naquela época que recomecei a sonhar...

(Chagall)

Durante certo tempo, esta pintura encontrou-se presente em todos os meus pensamentos e partilhou da minha vida. Escondi-a numa gaveta: ninguém deveria dar com ela e pôr-me a ridículo; mas, mal ficava a sós no meu quartinho, ia buscá-la e conversava com ela.À noite, por meio de um alfinete, pendurava-a no papel da parede, em frente, por sobre a cama, e contemplava-a até adormecer; de manhã, o meu primeiro olhar recaía sobre ela. Foi precisamente por aquela época que recomecei a sonhar muito, como em criança sempre sucedera.Parecia-me que não sonhara durante anos.Elas surgiam de novo, as imagens, totalmente diferentes e, repetidamente, aparecia ali a figura pintada, com vida e falando, ora amável ora hostil, quer num esgar, quer infinitamente bela, harmoniosa e preciosa.
Certa manhã, ao acordar daqueles sonhos, reconheci-a subitamente. Olhava-me de um modo fabulosamente familiar parecia pronunciar o meu nome. Dava-me a sensação de me conhecer tão bem como uma mãe, de ter cuidado de mim desde sempre.De coração descompassado, fixava o olhar na folha: os cabelos castanhos, a boca meio feminina, a testa desenvolta e com aquela peculiar luminosidade (...) e senti avizinhar-se o reconhecimento, a recordação, o saber.

Hermann Hesse (Demian)

Conta-me outra vez...

(Goya)


CONTA-MO OUTRA VEZ


Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me outra vez que o par
do conto foi feliz até à morte.
Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
lhe ocorreu enganá-la.E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuaram beijando-se cada noite.
Conta-mo mil vezes por favor;
é a história mais bela que conheço.

Amália Bautista ( Qual é a Minha ou a Tua Língua? -Cem poemas de Amor de outras
línguas)

domingo, maio 21, 2006

UM DOMINGO COM JACQUES PRÉVERT



DIMANCHE



Entre les rangées d’ arbres de l’avenue des Gobelins
Une statue de marbre me conduit par la main
Aujourd’hui c’est dimanche les cinémas sonts pleins
Les oiseaux dans les branches regardent les humains
Et la statue m’embrasse mais personne ne nous voit
Sauf un enfant aveugle qui nous montre du doigt.


Jacques Prévert ( Paroles)

sábado, maio 20, 2006

O Destino se confunde com a brevidade do verso...



CARPE DIEM


Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
Que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nesses lábios que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva.Um nome inútil persegue a tua memória
para que o roubes ao sono dos sentidos.Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a pr´pria figura do vazio. Então,
por que esperas para saír ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? « Não»,dizes « nada me obrigará
à renúncia de mim próprio-nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!»
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

Nuno Júdice (Poemas em Voz Alta)

sexta-feira, maio 19, 2006

É verdade que a verdade que procuro não está nela mas em mim...



Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou o céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa.Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofencivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal.Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo.É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir.É verdade que a verdade que procuro não está nela mas em mim.(...) Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só:criar.Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.

Marcel Proust (Do lado de Swann)

quarta-feira, maio 17, 2006

E se... não somos capazes de encontrar sozinhos a casa?

(Abbati)


E se, depois de tantos anos a viver na cidade, não reconhecermos o caminho, não somos capazes de encontrar sozinhos a casa situada nas terras dos nossos antepassados, andamos ás voltas,às apalpadelas, apesar de pensarmos ter guardado intacta a recordação dessa casa; intacto o seu esconderijo nas barbas de milho, contra a latada e sob a poeira vermelha da eira, a cozinha à esquerda, a fachada disforme, com o forno de pão, o estábulo no outro extremo, a barra cor-de-rosa e o muro; se regressamos depois de tantos anos e entramos, como se entrássemos em nossa casa, nessa casa que é nossa , por ter pertencido ao pai, onde, por ser nossa, temos alguns direitos...

Brigitte Paulino-Neto ( A Melancolia do Geógrafo)

terça-feira, maio 16, 2006

Na nudez da luz...

(AGUARELAS DE TURNER- Cabo Sunion)

SUNION

Na nudez da luz (cujo exterior é o interior)
Na nudez do vento ( que a si próprio se rodeia)
Na nudez marinha (duplicada pelo sal)


Uma a uma são ditas as colunas de Sunion

Sophia de Mello breyner Andresen

domingo, maio 14, 2006

UM DOMINGO COM ANTÓNIO RAMOS ROSA


Sem direcção, sem caminho

escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro

acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios

ou enuncio as simples reiterações da terra,

as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio

de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco

de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,

um organismo verde aberto sobre o mar,

as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra

nas suas verdes estratégias, nas suas pontes

de música visual: o equilíbrio preenche os buracos

com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito

António Ramos Rosa

sábado, maio 13, 2006

HOJE É DIA DE FESTA!

(Turner)

“Aguarelas de Turner” foi criado como veículo de expressão de emoções que foram encontrando forma nesse lugar em que a escrita se encontra com a tela ou a fotografia.
Fi-lo por necessidade e por prazer, por vontade de exteriorizar o meu olhar.
Na hora de publicar o post desconhecia e desconheço o que vai surgir. Nada é pensado antecipadamente. O post diário nasce num lugar interior, tomando como tela a escrita e como escrita a imagem. Deixo que elas se entrelacem numa espécie de dança e, depois, acontece o post. Direi também que tendo cada um uma unidade própria não deixa nunca de haver uma relação com anteriores, como se um fio subterrâneo os ligasse, construindo-se assim uma historicidade onde um continuum liga as diferentes descontinuidades.
O “ Aguarelas de Turner “ de hoje difere inevitavelmente do que nasceu em meados de Maio, dia 13 por sinal , já que ele mesmo sofreu influências de todos os que com ele interagiram.
Neste aniversário não poderia deixar de me sentir rodeada por todos aqueles que foram deixando os seus comentários trazendo-me,de um modo vivo e sentido, algo de seu, abrindo-me também a novos olhares.
Obrigada AMIGOS

quinta-feira, maio 11, 2006

Depois retiro da sombra, peça após peça, os seus tesouros...


( Munique, 9 de junho de 1897)
Tarde de quarta -feira

Deslizo para fora da tua casa
Pelas ruas de chuva, e acredito
Que cada transeunte com que me cruzo
Vê brilhar nos meus olhos
A alma radiosa e redimida.

Quero ao caminhar, a todo o custo
Esconder da multidão, a minha alegria,
Levo-a à pressa para minha casa;
Fecho-a no mais fundo das noites
Como um cofre dourado.

Depois retiro da sombra,
Peça após peça, os seus tesouros
E já não sei para onde olhar;
Pois cada recanto do meu quarto
Está repleto, repleto de ouro.

É uma riqueza infinita
Como nunca a noite viu
Nem o orvalho humedeceu;
E que nunca uma noiva
Por amor, recebeu

São ricos diademas
Em que pedras são estrelas.
Ninguém o sabe.Estou,
Entre os meus tesouros como um rei,
E sei quem é a minha rainha.

Rainer Maria RILKE (a Lou Salomé em Munique)

terça-feira, maio 09, 2006

Brisas incendeiam o mundo...

( Valtat)

AMOR

O teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos,existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo.
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos.
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios, a idade das
rochas diz-me palavras profundas.
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto ( A Casa,a Escuridão)

segunda-feira, maio 08, 2006

Pérolas?

domingo, maio 07, 2006

ELAS SÃO AS MÃES...

(Ladmore)


Algumas Reflexões Sobre a Mulher

Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.

Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.

Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.

Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.

Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.

O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.

Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.

Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.

É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.

São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.

Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.


Eugénio de Andrade

sábado, maio 06, 2006

o reflorir de sempre, o dia a dia...




Reflorir, sempre

Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.

Jorge de Sena

sexta-feira, maio 05, 2006

Tu tens um medo: acabar.



Cântico IV
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

Cecília Meireles

quinta-feira, maio 04, 2006

CÃO COMO NÓS


20.

- Será que o cão tem espírito?, perguntou-me o filho do meio.
Olhei para ele surpreendido.E acabei por responder:
- Não sei sequer se nós próprios temos espírito ou se é o espírito que nos
tem ou está em nós.
- é isso o que eu queria dizer. Olha para ele.
Era um fim de tarde de Agosto, o cão estava parado frente ao mar, o pêlo muito luzidio, a cabeça levantada, narinas abertas, sorvendo o ar.
- Ele está a cheirar o espírito. O espírito da terra, o espírito do vento, o espírito das águas.

24.
Mais tarde, na praia, sempre que nos lançámos à água ele ficava agitado. Mas mantinha-se em terra enquanto a minha mulher lá estivesse. Assim que ela vinha nadar connnosco, logo ele se lançava à água, passava-lhe à frente e procurava empurrá-la para a praia. Por mais esforços que fizéssemos para ele a deixar em paz, ele não desistia. Nós podíamos ir pelo mar a dentro, a dona não. Não queria perder a mãe outra vez.

27.
( Podes correr comigo pela praia fora, aqui ninguém nos vê, somos só nós e o mar, saltas a meu lado como se fosses um pedaço de areia e vento, uma estátua movente, cão de água, anda daí comigo por esta noite dentro.)

Manuel Alegre ( Cão como Nós)

quarta-feira, maio 03, 2006

A secreta viagem




A secreta viagem

No barco sem ninguém ,anónimo e vazio,

ficámos nós os dois ,parados ,de mão dada ...

Como podem só os dois governar um navio?

Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais,e de maneira,à proa...

Que figuras de lenda!Olhos vagos,perdidos...

Por entre nossas mãos , o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos,sem ver,a longínqua miragem...

Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,

se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa ,passa...alheio aos meus sentidos.

-Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos!


David Mourão-Ferreira

terça-feira, maio 02, 2006

...ter no centro da sua existência uma única e grande força da Natureza



Faz parte do destino mais ditoso de um povo ter no centro da sua existência uma única e grande força da Natureza,que ritmicamente exerça o seu poder. Foi o caso do Nilo para os antigos Egípcios.Estes recebiam de uma mão benigna a benção e o pão, os ensinamentos jurídicos e o ritmo da vida. Por isso eram tão sérios e calmos, como ninguém depois deles, e venceram a morte e a vida, uma através da outra.

Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) livro dos Amigos