Antes de prosseguir nas minha considerações sobre cultura não posso deixar de observar que o mundo enferma de fome e ignora a cultura e que a tentativa de reconduzir à cultura um pensamento ocupado apenas pela fome é um recurso por completo artificial.
O que acima de tudo importa, assim me parece, é não tanto defender uma cultura cuja existência jamais excluiu a fome e libertou o homem da preocupação de uma vida melhor, como extrair daquilo que se denomina cultura umas quantas ideias vectoriais cuja energia motriz equivalesse à da fome.
Antes de mais nada, necessitamos de viver, necessitamos de acreditar que não estamos condenados a que esse indefinido produto do misterioso íntimo de todos nós para sempre nos obceque com uma ansiedade exclusivamente gástrica. O que pretendo frisar é que, se o que mais nos importa é comer, de maior importância será ainda não desperdiçar unicamente nessa única preocupação todo o nosso mero potencial de fome. Se o traço característico da nossa época é a confusão, distingo perfeitamente na raiz desta confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, entre as coisas e as ideias e os signos que as representam.
E a causa de tudo isto não é decerto a carência de sistemas filosóficos, pelo contrário, o facto de serem inúmeros e contraditórios caracteriza a nossa velha cultura francesa e europeia. Todavia em que é que estes sistemas afectaram jamais a vida, a nossa vida? Não pretendo afirmar que os sistemas filosóficos devam ser postos em prática directa e imediatamente, mas das alternativas que passo a expor uma terá de ser verdadeira: Ou estes sistemas estão dentro de nós e impregnam o nosso ser a ponto de servirem de manutenção à própria vida ( e se é este o caso, de que servem os livros?) ou então não penetram em nós e não têm, por consequência, possibilidade de prover à subsistência da vida (que importa nesse caso a sua desaparição?).
Temos de insistir numa ideia de cultura-em-acção, cultura a desenvolver-se dentro de nós como um novo orgão, uma espécie de segundo hálito; e na de civilização como uma cultura aplicada, a controlar até às nossas acções mais subtis, uma presença de espírito. (...)
(Antonin Artaud- O teatro e o seu duplo)
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