terça-feira, junho 17, 2008

A encosta do prado era tão a pique...

(Van Gogh)
Julguei durante muito tempo ter poucas recordações de infância; quero dizer de antes dos sete anos. Mas enganava-me: penso antes que até hoje quase não lhes dei ocasião de subirem até mim. Ao reexaminar os meus últimos anos no Mont-Noir, pelo menos algumas tornam-se pouco a pouco visíveis, como acontece com os objectos de um quarto com persianas fechadas, no qual há muito não nos aventuramos a entrar.
Revejo sobretudo plantas e animais, em plano secundário brinquedos, jogos e ritos que aconteciam à minha volta, mais vagamente e como que em último plano as pessoas. Trepo por entre ervas altas a encosta abrupta que leva ao terraço do Mont-Noir. Ainda não foi a ceifa. Há uma grande quantidade de acianos, papoilas e malmequeres, que lembram às minhas criadas a bandeira tricolor, ideia de que não gosto, porque queria que as minhas flores fossem só flores. Ignorávamos, claro, que dentro de cinco ou seis anos estas «papoilas dos Montes da Flandres» iriam ficar célebres por um motivo fúnebre, dormideiras em verdade, sagradas para o sono de alguns milhares de jovens ingleses que ali foram mortos, e de que ainda se vendem no nosso tempo reproduções em papel de seda escarlate para certas obras de caridade anglo-saxónicas. A encosta do prado era tão a pique que o carrinho de mão que eu puxava, cheio de ameixas ou de groselhas verdes colhidas no pomar entornavam-se sempre e elas rebolavam pela erva. No tempo das tílias em flor, a colheita durava vários dias. Estendíamo-la depois no chão do celeiro que cheirava bem todo o Verão.
Tive uma cabra branca a que o próprio Michel dourou os chifres, animal mitológico antes de eu saber o que era a Mitologia. Tive um grande carneiro muito branco a que dávamos banho todos os sábados na cuba da lavandaria; fugia para se rebolar na erva húmida, perseguido, quando era a grande barrela da Primavera em que se estendiam no campo os lençóis, as fronhas, as toalhas e os guardanapos amontoados no celeiro desde o último Outono, pelas lavadeiras aflitas e aos gritos.(...) Na altura dos belos crepúsculos, Michel acendia nos bosques inúmeras lamparinas esverdeadas parecidas com pirilampos; a criança que segurava aquela mão forte poderia pensar que tinha entrado no reino das fadas. Ficava um pouco inquieta por se perturbar o sono dos coelhos, mas garantiam-lhe que os coelhos já estavam a dormir nas tocas.

(Marguerite Yourcenar- O quê? A Eternidade)

2 comentários:

  1. ouecenar na infância perdida... A dolência da memória recortada pela somplicidade magistral da escrita.
    Obrigada por tê-la trazido bem como
    A Van Gogh.
    Bj.

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  2. Texto belíssimo!!!!!
    Mémorias das coisas que nos tocam.

    bjs.

    JU Gioli

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