terça-feira, maio 15, 2012

Onde pousas as tuas mãos...

   (Picasso)
 
Onde tu pousas as mãos, 
naturalmente 
eu vou pousar as minhas. Um silêncio
faz-se pela casa, uma luz coada vem da janela
e cobre os móveis de uma poalha 
doirada. Os objectos estão quietos 
como nunca. 

Onde tu pousas as mãos,
onde tu pousas mesmo se brevemente as mãos,
torna-se íntima a percepção que se tem de cada hora, 
de cada amanhecer, 
de cada exacto momento. O entardecer
é só um vasto campo que se abre,
um rumor de folhas que restolham no jardim.

Escrever é ler,
ler é escrever - eu sei isso
porque em cada sítio onde [do meu corpo] tu pousaste as tuas mãos
ficou escrito - eu vejo-o:  nítido - 
sobre o mais frágil espelho dos sentidos, uma palavra que se lê 
de trás para diante. Quando te deitas eu sinto-lhe o perfume, 
que é o da noite que entra pela janela.

E onde tu pousas as tuas mãos faz-se um rio
de prata e de quietude mesmo nas minhas mãos 
que pousam onde as tuas foram antes procurar
a quietude, procurar as tuas mãos. São exactas as tuas mãos,
são necessárias, têm dedos
que são os filamentos de gestos que descrevem na penumbra
desenhos tão perfeitos que surpreendem.

Onde tu 
pousares as tuas mãos
eu quero estar.
Exactamente como a sombra 
cai na sombra. A água
na água. O pão  
nas mãos.

(Bernardo Pinto de Almeida)



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