sexta-feira, novembro 06, 2009

Uma vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu



O cenário da nossa conversa foi a casa de Verão de Freud no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos onde Viena elegante gosta de se encontrar. Eu vira o pai da  psicanálise pela última vez na sua casa despertenciosa na capital austríaca. Os poucos anos decorridos entre a minha última visita e a actual tinham multiplicado as rugas na sua fronte. Tinham intensificado a sua palidez escolástica. A sua face estava tensa, como se sentisse dor. A sua mente estava alerta, o seu espírito firme, a sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala alarmou-me.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitara de ser operado. Desde então, Freud usa uma prótese para facilitar a fala. Isso não é em si pior do que usar óculos. A presença do aparelho metálico embaraça mais Freud do que os seus visitantes. Ao fim de algum tempo, é quase imperceptível para quem conversa com ele. Nos seus dias bons, não é sequer detectável. Mas para Freud é motivo de permanente irritação.
- Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho consome tanta energia preciosa. No entanto, prefiro um maxilar mecânico a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.
- Talvez os deuses sejam gentis connosco-prosseguiu o pai da psicanálise- tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte parece menos intolerável do que os múltiplos fardos que carregamos.
Freud recusa-se a admitir que o destino lhe reserva algum mal especial.
- Por que razão- disse calmamente- deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com os seus desconfortos manifestos, chega a todos. Atinge uma pessoa aqui, outra ali. O seu golpe atinge sempre um ponto vital. A vitória final pertence sempre ao Verme conquistador.
Apagam-se, apagam-se as luzes- todas se apagam!
E sobre cada forma trémula
O pano, uma mortalha fúnebre
Cai, com o ímpeto de uma tempestade.
E os anjos, pálidos e exangues,
Erguendo-se, desvelando-se, afirmam
Que a peça é a tragédia 'Homem'
E o seu herói, o Verme Conquistador. (1)
- Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal- continuou o mais importante analista do cérebro humano- vivi mais de setenta anos. Tive comida suficiente. Apreciei muitas coisas- a companhia da minha mulher, os meus filhos e os poentes. Vi as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Uma vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso pedir?
- O senhor teve fama- disse eu. - A sua obra influi na literatura de todos os países. Por sua causa o homem olha para a vida e para si mesmo com outros olhos. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo uniu-se para o homenagear- à excepção da sua própria Universidade!- Se a Universidade de Viena me tivesse demonstrado reconhecimento, teria acabado apenas por envergonhar-me. Não há razão para que me aceitem a mim ou à minha doutrina, pelo facto de eu ter setenta anos. Eu não atribuo qualquer importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A minha modéstia não é uma virtude.
- Para si não tem qualquer significado o facto do seu nome sobreviver?
- Absolutamente nenhum, mesmo que sobreviva, o que não é de modo algum uma certeza. Estou bastante mais interessado no destino dos meus filhos. Espero que a vida deles não seja tão difícil. Não posso torná-la muito mais fácil. A guerra liquidou praticamente a minha modesta fortuna, a poupança de uma vida inteira. No entanto, felizmente, a idade ainda não é um fardo demasiado pesado. Posso continuar! O meu trabalho ainda me dá prazer.(cont.)
(1) -Poe, Edgar Allan in " The Conqueror Worm", 1843)
( O original desta entrevista foi publicada no livro de George Sylvester Viereck. "Glimpses of de Great", 1930, editado simultâneamente em Nova Yorque, Londres e Berlim, e reeditada em "Psychonalysis and the future. A centenary commemoration of birth of Sigmund Freud". New York; National Psychological Assotiation for Psychoanalysis, Inc., 1957. pag 1-11- trad. Vasco Tavares dos Santos e Sofia Castro Rodrigues)

1 comentário:

  1. Estas entrevistas com pessoas como Freud são muito interessantes. Lêem-se muitas coisas nas entrelinhas, pormenores que revelam melhor o homem que escreve os livros e, por isso, também, os próprios livros.
    JR

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos