Segundo a minha própria experiência, não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento; isso, porém, não me dá o direito de negar que ele de facto ocorra em outras pessoas. A única questão consiste em verificar se está sendo correctamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução desse problema. A ideia de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto da nossa psicologia, que se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica- isto é genética para esse sentimento. O ego nos aparece como algo autónomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora- apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada-, configurou uma descoberta efectuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém o ego, de qualquer modo, parece manter linha de demarcação bem claras e nítidas. Há somente um estado-indiscutivelmente fora do comum, embora não possa ser estigmatizado como patológico- em que ele não se apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e objecto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que "eu" e "tu" são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um facto. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma função fisiológica (isto é, normal) deve também, naturalmente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. (...) Assim, até mesmo o sentimento do nosso próprio ego que está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que se não pode ser demonstrado pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. (....)
Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correcta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo-na verdade, totalmente abrangente-, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Suponho que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo- as mesmas ideias com que o meu amigo elucidou o sentimento "oceânico". (....) (cont.)
(Sigmund Freud - O Mal-Estar da Civilização )
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução desse problema. A ideia de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto da nossa psicologia, que se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica- isto é genética para esse sentimento. O ego nos aparece como algo autónomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora- apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada-, configurou uma descoberta efectuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém o ego, de qualquer modo, parece manter linha de demarcação bem claras e nítidas. Há somente um estado-indiscutivelmente fora do comum, embora não possa ser estigmatizado como patológico- em que ele não se apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e objecto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que "eu" e "tu" são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um facto. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma função fisiológica (isto é, normal) deve também, naturalmente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. (...) Assim, até mesmo o sentimento do nosso próprio ego que está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que se não pode ser demonstrado pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. (....)
Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correcta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo-na verdade, totalmente abrangente-, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Suponho que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo- as mesmas ideias com que o meu amigo elucidou o sentimento "oceânico". (....) (cont.)
(Sigmund Freud - O Mal-Estar da Civilização )