sexta-feira, abril 21, 2006

O importante seria recolher o pouco que ele pudesse filtrar...




Certa manhã, durante um dos seus passeios de herbanário, houve um acontecimento insignificante e quase grotesco que lhe deu que pensar e exerceu sobre ele um efeito comparável ao de uma revelação que a um devoto viesse lançar luz sobre um dos santos mistérios. Tinha ele saído da cidade ao romper do dia, em direcção à orla das dunas, levando consigo uma lupa que, sob indicações suas, lhe fabricara um oculista de Bruges, e de que ele se servia para examinar de perto as radículas e sementes das ervas recolhidas.Por volta do meio-dia, deixou-se dormir, deitado de barriga para baixo numa cova aberta na areia, cabeça apoiada no braço e a lupa, caída da mão, pousada debaixo dele num tufo de ervas secas. Pareceu-lhe,ao despertar,distinguir,
mesmo junto à cara um animal extraordinariamente móvel, insecto ou molusco, que se movia na sombra. Era de forma esférica; a parte central, de um negro brilhante e húmido, era rodeada por uma zona de um branco.rosado ou baço; uns pêlos franjados cresciam em redor, saídos de uma espécie de mole carapaça castanha, toda gretada e empolada de bolhas. Uma vida quase horripilante povoava essa frágil coisa.Em menos de um instante, antes mesmo de formular um pensamento sobre o que se lhe deparava,reconheceu que aquilo que via mais não era de que um dos seus olhos reflectido e aumentado pela lupa, atrás da qual areia e erva formavam uma espécie de placa semelhante à dos espelhos. Pôs-se de pé, meditativo. acabava de se ter visto a ver-se; fugindo á rotina das habituais prespectivas, contemplara de perto o orgão pequeno e enorme, próximo e contudo estranho, vivo mas vulnerável,dotado de um poder imperfeito embora prodigioso, do qual ele dependia para ver o universo. Nada de teórico havia de extrair de uma tal visão que, curiosamente, viera aperfeiçoar o conhecimento de si próprio e, ao mesmo tempo, a noção dos múltiplos objectos de que se decompunha a sua personalidade. Como o olho de Deus em certas estampas, este olho tornava-se um símbolo.O importante seria recolher o pouco que ele pudesse filtrar do mundo antes de tudo escurecer, controlar o que ele testemunhasse e,se possível, corrigir-lhe os erros. Em certo sentido, o olho contrabalançava o abismo.

Marguerite Yourcenar ( A Obra ao Negro)

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