(Fotografia de Ana Guedes)
Carta ao meu filho que faz hoje 18 anos
Ainda envolta na nuvem da longa anestesia perguntei à voz que no meu canto superior esquerdo balbuciava algumas palavras que logo me pareceram"impossíveis".
-ele é bonito?
Sossegaram-me com sorrisos afirmativos de circunstância, mas, de imediato descobri como iria ser longa a espera para nosso encontro.
Vi-te em fotografia ainda nesse dia. O teu pai e a tua irmã apressaram-se a mover céus e terras junto do fotógrafo para conseguir "trazer-te" na visita da tarde. Foi assim que te "vi" pela primeira vez, acompanhando os relatos detalhados de tudo o que lá se passava.Eras quase o bebé mais lindo que já alguma vez vira e os meus olhos mergulhavam dentro da fotografia na esperança de o tempo poder ser acelarado.
Ao 3º dia, depois daquela peripatética viagem em cadeira de rodas, lá nos pudemos finalmente tocar. Eu, muito a medo, já que aquela cabina complexa, fazia-me temer mexer em algum sítio vital. Uma festinha ao de leve, primeiro no braçinho, depois na cabeça, de novo no braçinho...para finalmente te tirarem da câmpanula para te colocarem no meu cólo. Saberia eu pegar-te, envolvido que estavas naquele emaranhado complexo? Se aquele primeiro instante nunca poderia corresponder ao sonho que longos meses me acompanhara, foi, todavia, inesquecível. A memória desses instantes gravou-se totalmente no meu corpo. Sabes, são aquelas memórias que nunca nos deixam e que se constituem como alicerces da nossa vida. Nunca deixes de as querer "recolher". Só nas experiências emocionais e com elas, conseguimos constituir a nossa "biblioteca para a vida", aquela que nos momentos conturbados faz as vezes dos carinhos dos nossos pais.Guarda-as sempre no teu cofre mais seguro.
-ele é bonito?
Sossegaram-me com sorrisos afirmativos de circunstância, mas, de imediato descobri como iria ser longa a espera para nosso encontro.
Vi-te em fotografia ainda nesse dia. O teu pai e a tua irmã apressaram-se a mover céus e terras junto do fotógrafo para conseguir "trazer-te" na visita da tarde. Foi assim que te "vi" pela primeira vez, acompanhando os relatos detalhados de tudo o que lá se passava.Eras quase o bebé mais lindo que já alguma vez vira e os meus olhos mergulhavam dentro da fotografia na esperança de o tempo poder ser acelarado.
Ao 3º dia, depois daquela peripatética viagem em cadeira de rodas, lá nos pudemos finalmente tocar. Eu, muito a medo, já que aquela cabina complexa, fazia-me temer mexer em algum sítio vital. Uma festinha ao de leve, primeiro no braçinho, depois na cabeça, de novo no braçinho...para finalmente te tirarem da câmpanula para te colocarem no meu cólo. Saberia eu pegar-te, envolvido que estavas naquele emaranhado complexo? Se aquele primeiro instante nunca poderia corresponder ao sonho que longos meses me acompanhara, foi, todavia, inesquecível. A memória desses instantes gravou-se totalmente no meu corpo. Sabes, são aquelas memórias que nunca nos deixam e que se constituem como alicerces da nossa vida. Nunca deixes de as querer "recolher". Só nas experiências emocionais e com elas, conseguimos constituir a nossa "biblioteca para a vida", aquela que nos momentos conturbados faz as vezes dos carinhos dos nossos pais.Guarda-as sempre no teu cofre mais seguro.
Mas a nossa vez não tinha chegado ainda naquele dia. Deves ter dito de ti para ti: a minha mãe quase se parece como estes doutores, mal chega vai-se logo embora. Será que isto vai ser sempre assim?
Chegou finalmente o sábado. E foi tudo de repente. A enfermeira ,lesta e insensível, aproximou-se da cama e disse-me: se quiser ver o seu bebé vista-se e venha ao berçário! Acredita que não sabia! Fui numa atrapalhação, depois de percorrer um longo e difícil corredor. Chegada, olho-te no colo da enfermeira que te pegava. Foi um instante! Quando nos olhámos reconhecemo-nos como velhos conhecidos.Tudo a partir daí me pareceu mais fácil. Finalmente podias descer do ramo da árvore para a concha dos meus braços e encontrar enfim o teu lugar.
Façamos agora um salto de gigante no tempo. Hoje no teu metro e oitenta e muitos, lutas cada dia contra os teus obstáculos. Por vezes apetece-te dizer à maneira do Paul Nizan: Eu tenho 18 anos. Não consentirei que ninguém diga que é a idade mais bela da vida ...
É que a descoberta de que a concha tecida à tua volta progressivamente tem de dar lugar às tuas próprias construções é uma descoberta inevitavelmente difícil.Pensa-se sempre que, sem rede, nunca se conseguirá largar. Quer-se construir o mundo com uma determinação ainda oscilante, que ora sonha "o caminho marítimo", ora espera que a vida venha desaguar na praia.
Todos sabemos que os actuais horizontes fazem, muitas vezes, temer o sucesso da viagem. Os escolhos são muitos e aos teus olhos eles podem ter a dimensão de uma montanha atribulada.Lembra-te contudo que os dois vencemos à partida a batalha mais importante- a batalha pela vida e pelo amor à vida.
Nada a partir daqui será verdadeiramente complicado, já que de então até cá, pudeste guardar já no teu cofre muitos e muitos momentos que te acompanham.
Um grande beijo de Parabéns, querido filho.