uns dias mais tarde, não muito depois, joão esteves entrou na tabacaria e o senhor alves demorou-o um minuto mais. apenas um minuto. disse-lhe que aquele fernando pessoa que ali costumava ir escrevinhava uns poemas, de vez em quando, e que os pusera aos dois num texto, disse-mo mas não mo mostrou, comentou o homem. e depois acrescentou. eu até gostava de o ler, mas ainda não o convenci, não sei se anda a fazer aquelas revisões, que um poema ainda amadurece com cuidado. o próprio fernando pessoa perguntara ao senhor alves como se chamava aquele homem jovem de tez brilhante que ali entrara, e que já vira umas quantas vezes, sempre impecávelmente prometedor e com jeito de empreendimento. o dono respondeu-lhe que era o esteves, falava-lhe por esteves, que era de uma educação das boas e passava de manhã muito cedo rigorosamente à hora das pessoas que trabalham sem medos. o poeta fernando pessoa reconheceu o nome, sim, já sabia o nome e concordava com a ideia dos bons modos, e depois afundou-se brevemente nos pensamentos e despediu-se. quando voltou, poucos dias depois, não resistiu a comentar a escrita do poema com um prazer visível de quem descobrira um texto precioso. o dono da tabacaria disse três vezes, ó senhor doutor, tem de mo deixar ler, que até fico vaidoso de vir dentro de uma literatura. e depois o joão esteves perguntou-lhe, e sermos nós bichos com pernas, imagine como são as coisas, um escritor que entra aqui como outro qualquer e que até se inspira em nós, homem, somos fonte de inspiração. fernando pessoa, pensou joão esteves, um nome de escritor. e depois ponderou que o poema, coisa sobre o qual não percebia nada, havia de ser uma porcaria sem interesse. olhou em redor, viu a confusão em que se tornara a tabacaria, aquele desarrumo e o aspecto feio do dono, e viu como dali não se via nada de particularmente belo, como havia um poema de ser belo escrito a pensar naquilo.
(valter hugo mãe- a máquina de fazer espanhóis)