quarta-feira, janeiro 31, 2007

Amar é a eterna inocência...



O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

8-3-1914 Alberto Caeiro

terça-feira, janeiro 30, 2007

Mesmo que não possas fazer a vida como queres...




Quanto puderes


Mesmo que não possas fazer a vida como a queres,
isto ao menos tenta
quanto puderes: não a desbarates
nos muitos contactos do mundo,
na agitação e nas conversas.


Não a desbarates arrastando­‑a,
e mudando­‑a e expondo­‑a
ao quotidiano absurdo
das relações e das companhias
até se tornar um estranho importuno.


Konstantinos Kavadis

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Il est des parfuns frais comme des chairs d'enfants...



Correspondances

La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles ;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

Baudelaire

UM DOMINGO COM JOSÉ CARDOSO PIRES




UMA SIMPLES FLOR NOS TEUS CABELOS CLAROS

«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»

«Marcaste o despertador»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»
«Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.»
«Pronto. Estás satisfeita?»
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.»
«- Mais um mergulho - pedia a rapariga.
A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;
- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.
Paulo apertou mansamente a mão da companheira;
- Embora?
- Embora - respondeu ela.
E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.» (...)

(José Cardoso Pires- Hóspede de Job)

sábado, janeiro 27, 2007

Durante nueve lunas crecerá tu cintura...



(Gowin)

Mujer: en un silencio que me sabrá a ternura,
durante nueve lunas crecerá tu cintura;
y en el mes de la siega tendrás color de espiga,
vestirás simplemente y andarás con fatiga.


-El hueco de tu almohada tendrá un olor a nido,
y a vino derramado nuestro mantel tendido-,
Si mi mano te toca,
tu voz, con vergüenza, se romperá en tu boca
lo mismo que una copa.
El cielo de tus ojos será un cielo nublado.
Tu cuerpo todo entero, como un vaso rajado
que pierde un agua limpia. Tu mirada un rocío.
Tu sonrisa la sombra de un pájaro en el río...


Y un día, un dulce día, quizá un dí de fiesta
para el hombre de pala y la mujer de cesta;
el día que las madres y la recién casadas
vienen por los caminos a las mismas cantadas;
el día que la moza luce su cara fresca,
y el cargador no carga, y el pescador no pesca...
-tal vez el sol deslumbre; quizá la luna grata
tenga catorce noches y espolvoree plata
sobre la paz del monte; tal vez el villaje
llueva calladamente; quizá yo esté de viaje...-
Un día un dulce día con manso sufrimiento,
te romperás cargada como una rama al viento,
y será el regocijo.
de besarte las manos, y de hallar en el hijo
tu misma frente simple, tu boca, tu mirada,
y un poco de mis ojos, un poco, casi nada...

(De "Gracia Plena".)

José Pedroni

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Quem primeiro é que sorri?




Sorriso audível das folhas


Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Acabadinho de chegar..

Este é o Simão... com três horas. O "Aguarelas"está em festa!

A poucas horas do Encontro...

(Klimt) Esperança

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Nós podemos viver alegremente...

(Hamen)

Leite-creme

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham, com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quizer, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, p'ra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandecida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de Verão.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite creme,
E os mélicos pudins.

(Cesário Verde) "Impossível", OLivro de Cesário Verde

domingo, janeiro 21, 2007

BOA NOITE FIAMA




Sei que o cérebro o coração e o ventre
são uma só forma. O mesmo ponto claro
no alcatrão profundo da abóbada.
Que o cérebro murmura
como o estorninho que devora a verdura
que se estende diante dos olhos.


O ventre, esse, pernoita e imita-o
ao som do ritmo do coração
que digere os vegetais túrgidos
a que pude aconchegar os lábios.
Nada mais bascula no tecto
onde um vapor prende os intervalos.


Costelas, harpa da noite, com um som
de osso cristalino em que não toco
senão quando o cadáver se desenvolver
deste corpo ornamentado por flores frescas.
Assim um tronco esvaziado
pelo formigueiro por vezes confunde-se
com o meu cérebro, o coração e o ventre.


O luar eterniza-se como fundo
deste pensamento acerca das formas.
É uma pequena cabeça de formiga,
tão negra que a agradeço aos mestres clássicos
pelo negrume descrito nas cosmogonias

(Fiama de Hasse de Pais Brandão)

sábado, janeiro 20, 2007

Onde o corpo é alma...





Na orla do mar

Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
- e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo -
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.


(Eugénio de Andrade)

O teu rosto ...não tem búzios, nem conchas, nem corais..




O teu rosto, longamente procurado,

não tem búzios, nem conchas, nem corais.

Na praia, até então intacta,

sinto a luz de teus passos.

ou será uma onda fugitiva,

a tornar transparente a tua ausência?

(Graça Pires)

terça-feira, janeiro 16, 2007

Defender la alegria como un destino....




a trini


Defender la alegría como una trinchera
defenderla del escándalo y la rutina
de la miseria y los miserables
de las ausencias transitorias
y las definitivas

defender la alegría como un principio
defenderla del pasmo y las pesadillas
de los neutrales y de los neutrones
de las dulces infamias
y los graves diagnósticos

defenderla alegría como una bandera
defenderla del rayo y la melancolía
de los ingenuos y de los canallas
de la retórica y los paros cardiacos
de las endemias y las academias

defender la alegría como un destino
defenderla del fuego y de los bomberos
de los suicidas y los homicidas
de las vacaciones y del agobio
de la obligación de estar alegres

defender la alegría como una certeza
defenderla del óxido y la roña
de la famosa pátina del tiempo
del relente y del oportunismo
de los proxenetas de la risa

defender la alegría como un derecho
defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las lástimas
del azar
y también de la alegría.

Mario Benedetti

segunda-feira, janeiro 15, 2007

No mar tanta tormenta e tanto dano...

(Turner)

No mar tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida

Que não se arme e indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


( Luís Vaz de Camões ) Os Lusíadas (I,106)

domingo, janeiro 14, 2007

UMA MANHÃ DE DOMINGO COM AMADEO DE SOUZA CARDOSO

(Amadeo de Souza- Cardoso)

sábado, janeiro 13, 2007

...até tive medo que caísse um raio!



Carta do reverendo frei Ben Zicabòlico, assistente na cidade de Lisboa, ao ilustríssimo e poderossíssimo conde Matamouros, em serviço na Índia, sobre as novidades literárias de 1572.
...
Agora que aconselhei estes três volumes a Vossa Senhoria, todos novos, e um de cada materia- ordens religiosas, ordens militares, regras e regrinhas-,sempre quero prevenir o Senhor Conde contra um poema saído este ano da mesma oficina que o "Compêndio das Crónicas".
É um oitavo delgado(mau sinal!), impresso em papel barato.Vem todo em estrofes, e fala da Índia e dos Portugueses com desenvoltura de estarrecer. Chamam-lhe "Os Lusíadas", não se sabe bem porquê. O verso é do pior! Daquele que fez o Ariosto na Itália, e depois se enraizou em Espanha, e mais valia que não tivesse entrado neste Reino. Como se não tivéssemos uma medida velha bem portuguesa! O autor é um tal Luís de Camões, desembarcado das Índias há três anos, e muito notado pela sua turbulência, tanto lá como cá, onde até frequentava o Mal-Cozinhado.
A portada do livro está enquadrada pelo desenho das colunas e do pelicano, manifesta inconveniência, pois esta mesma esquadria servira já a obras de real virtude e instrução, como a "Doutrina Cristã", impressa em 1554 e as "Coisas da cidade de Lisboa", mandadas publicar há vinte anos pelo Sr.D Fernando, arcebispo desta metrópole.
(...)
Bastará referir, para Vossa Senhoria fazer uma ideia, que o autor deste poema sem exemplo entende celebrar as glórias das Índias, ganhas pelos avôzinhos de Vossa Senhoria e outros católicos capitães. Mas, passa-se isto: em vez de cantar os esplêndidos combates de Chaúl e Diu, emprega-se em descrever à sua maneira( e que maneira!) a viagem de D.Vasco da Gama, como se meras navegações fossem mais honrosas, e abrissem mais largamente o reino dos Céus, que os combates e a redução dos inimigos da nossa Fé. Pior: a viagem das Índias, tal como o poema explica, torna-se resultado de uma contenda entre os falsos deuses do paganismo, os quais, como todos nós, os Católicos, sabemos, não passam de debuxo do Demónio. O partido de Vénus vence o partido de Baco.Para disfarçar, o autor desta ficção ímpia e nada patriótica invoca também, sobretudo ao narrar a história de Portugal, a nossa santa religião; e finge ardores, quando menos se espera, de quem chama os fiéis à guerra santa e à cruzada.(...) Nunca um livro português, impresso ou de mão se tinham lido sacrilégios tais: ao fim do canto 6, Vasco da Gama, vendo sosobrar a sua armada, invoca a protecção do nosso Deus, e quem realmente acode aos marinheiros em perigo é a deusa pagã do Amor e da Luxúria. Mais: o capitão português, miraculado de Vénus, agradece ao Deus das escrituras a protecção dispensada pela indecente filha de Júpiter e Diana. Como se esta é que fosse a verdadeira, e o nosso Deus uma protecção do Gama. Ao ler estes versos até tive medo que caísse um raio!
Dos termos em que o poeta descreve a figura e os encantos de Vénus, não tenho coragem para falar. Não pintam mais ao vivo- acredite Vossa Senhoria!- os autores condenados que se imprimem em países de heresia!(...)Chega o poema a ponto, em que Vasco da Gama e os seus companheiros são recebidos, mimosiados e laureados numa ilha deleitosa, verdadeira sucursal do Inverno. O que lá passam com as Ninfas, e o poeta descreve por míudo, seria suficiente, se tivesse acontecido, para levar ao fogo eterno as suas almas. O episódio da Ilha não é apenas atentatório da religião. Admitindo que o assunto de um poema à glória de Portugal devesse ser uma viagem, e não uma guerra, os Argonautas haviam de ser recebidos, ao regressarem da Índia, pelo rei que os mandara. Ora, essa audiência não descreve o poeta. Quem abre os braços a Vasco da Gama é a ninfa Tétis.Quem recompensa os marinheiros ávidos( e de que maneira!) são as nereidas estimuladas por Cupido. Debuxos do Demónio em vez do céu verdadeiro!(...)
Espanta que um religioso tenha aprovado o livro.Mas também digo: quem sabe se o manuscrito submetido a exame, não seria ainda muito pior? Há quem pretenda que sua Majestade vai outorgar uma tença ao autor de tais dislates...coisa de pouca monta...certamente...Que época a nossa! Que confusão de valores! Por mim não tenho dúvidas.Tal volume não pode entrar na Biblioteca de Vossa Senhoria. Horroriza-me pensar que o folheiem por acaso a Senhora Condensa, e as cândidas filhas de Vossas Senhorias. E menos ainda que chegue ao alcance de soldados da Índia. Os que sabem ler haviam de ser desviados da austeridade da milícia pelas perniciosas cores, com que o poeta pinta o vício. Todo o cuidado é pouco. Bom será que o tal poema d'Os Lusíadas, se o nosso relaxamento permitir que seja de novo impresso, leve indispensáveis modificações. Quanto ao autor, esse Camões que dizem, tenho por certo que há-de acabar mal.

Feita em Lisboa aos 4 de Janeiro do ano da Graça de 1573,

FREI BEN ZICALÒBICO (publicado no Suplemento de Artes e Letras do Jornal "Républica" no dia 4/01/1973)

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Quem...entre os dentes agarra a primavera!



Quem tem consciência para ter coragem,
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem,
Inventa a contra-mola que resiste!

Quem não vacila mesmo derrotado,
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado,
Entre os dentes segura a primavera!

João Apolinário



ver tb http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Apolin%C3%A1rio

____________________________
Enviado por Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Moradas Habitadas...

(Borisov)

Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Tudo, absolutamente, tudo foi imaginado naquela noite...

(Giotto)


Este amor louco pelo sonho, pelo prazer de sonhar, totalmente desprovido de qualquer tentativa de explicação, é uma das inclinações profundas que me aproximaram do surrealismo.(...)
Diz-se que durante o sono o cérebro protege-se do mundo exterior e que é muito menos sensível aos ruídos, aos cheiros, à luz. No entanto, por dentro parece ser bombardeado por uma autêntica tempestade de sonho que rebenta em ondas sucessivas. Milhões e milhões de imagens surgem assim cada noite, para se dissiparem no momento seguinte, envolvendo a terra num manto de sonhos perdidos. Tudo, absolutamente tudo, foi imaginado nesta ou naquela noite, por este ou por aquele cérebro e foi esquecido.
Pela parte que me toca, consegui catalogar uma quinzena de sonhos recorrentes que me seguiram ao longo da vida e têm sido fiéis companheiros de viagem. Alguns são extremamente banais: vou deliciosamente caindo num precipício, ou sou perseguido por um tigre ou touro. Dou por mim numa sala e fecho a porta atrás de mim, o touro arromba a porta, e assim sucessivamente.
Ou então, em qualquer fase da vida, vejo-me de repente peranta a obrigação de voltar a fazer exames. Pensava tê-los passado todos com sucesso, nada disso. Devo apresentar-me de novo, e claro que esqueci tudo o que devia saber.

Luis Buñuel( O meu último suspiro -Sonhos e Devaneios)

terça-feira, janeiro 09, 2007

Um pensamento visível....

Renoir)

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

(Alberto Caeiro)

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Trinta Aninhos é coisa pouca...acredita!

Contigo festejamos hoje um aniversário muito especial: a menina que está prestes a nascer e... à beira de ser Mamã ...
.Parabéns querida filha!

domingo, janeiro 07, 2007

...fim de domingo



Uma máscara, um perpétuo e natural disfarce de si mesma,
escondendo o rosto, escondendo a sua forma,
Mudanças e transformações a cada hora, a cada instante,
Caindo sobre ela,mesmo quando dorme.

Walt Whitman

UM DOMINGO COM WHITMAN



Quando ouvi o sábio astrónomo,
Quando as verificações, os números foram alinhados em colunas diante
de mim,
Quando me mostraram as cartas e os diagramas,para os adicionar,dividir
e medir,
Quando, sentado na sala,ouvi o astrónomo que fazia a sua conferência
e era muito aplaudido,
Depressa e sem qualquer explicação, senti-me cansado e aborrecido,
Até que me levantei e saí para andar sozinho ao acaso,
No ar da noite húmido e místico e, de tempos a tempos,
Erguer os olhos para os astros em absoluto silêncio.

Walt Whitman (Folhas de Erva)

sábado, janeiro 06, 2007

Dia e noite partilhámos os frutos da terra...

(Cezanne)

ilha secreta

Dia e noite partilhámos os frutos da terra
Pés no mar, acenaste-me adeus por outros lugares
As marés foram e as marés voltaram
Mas estavas por detrás de uma súcia de fronteiras

Numa cidade molhada voltastes a tomar a minha mão
Lentamente dedos elegantes navegaram a minha pele
Mostraste-me uma ilha dentro de um continente

As marés foram e as marés voltaram

O remoto mar reclamou-me uma vez mais
Trouxe o feitiço de Afrodite como meu único tesouro
Protegido numa fazenda da mais terna luxúria

Os mareantes esperaram, os marinheiros desesperam
Amaldiçoando calendários, venerando mapas
Garrafas de devoção são atiradas para as ondas invernosas
As marés foram e as marés voltarão


Mikhail Daedalus

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Recordando a Música Francesa





C'est si bon
De partir n'importe ou,
Bras dessus, bras dessous,
En chantant des chansons.
C'est si bon
De se dir' des mots doux,
Des petits rien du tout
Mais qui en disent long.

En voyant notre mine ravie
Les passants, dans la rue, nous envient.
C'est si bon
De guetter dans ses yeux
Un espoir merveilleux
Qui donne le frisson.
C'est si bon,
Ces petit's sensations.
Ca vaut mieux qu'un million,
Tell'ment, tell'ment c'est bon.

Vous devinez quel bonheur est le nôtre,
Et si je l'aim' vous comprenez pourquoi.
Elle m'enivre et je n'en veux pas d'autres
Car elle est tout's les femmes à la fois.
Ell' me fait : "Oh !". Ell' me fait : "Ah !".

C'est si bon
De pouvoir l'embrasser
Et pui de r'commencer
A la moindre occasion.
C'est si bon
De jouer du piano
Tout le long de son dos
Tandis que nous dansons.

C'est inouï ce qu'elle a pour séduire,
Sans parler de c'que je n'peux pas dire.
C'est si bon,
Quand j'la tiens dans mes bras,
De me dir'que tout ça
C'est à moi pour de bon.
C'est si bon,
Et si nous nous aimons,
Cherchez pas la raison :
C'est parc'que c'est si bon,
C'est parce que c'est si bon,
C'est parce que c'est si bon.

Ives Montand

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Vão e voltam e tornam a partir...

(Hogarth)

ALGUNS POEMAS DO LIVRO AFECTOS

Os indesejados hóspedes

Com o tempo a gente habitua-se a conviver
com os seus desgostos
Quando pela primeira
vez nos aparecem apanhamos um susto perdemos
o respirar o pé na vida
Depois que remédio
aceitamos albergar esse fantasma sádico
que logo ao acordarmos nos poisa pesadamente
nos ombros e lembra “Cá estou eu”
Depois segue-nos
até à casa de banho e tira-nos a vontade de cantar
no duche
Finalmente espreita-nos do fundo da chávena
de chá
Com o passar do tempo vamos albergando vários
destes indesejados hóspedes
Os mais antigos são mais
leves de peso mas têm a arte de nos obscurecer
a paisagem como vista através de um vidro sujo
Alguns
vão e voltam e tornam a partir
Outros instalam-se para
sempre nos sítios mais esconsos do nosso ser
casa por eles
assombrada
E assim vamos vivendo em doce inimizade
Afinal
já fazem parte da família


(Teresa Rita Lopes)

quarta-feira, janeiro 03, 2007

A Bruxa da Felicidade-À-Força...

(G.H.Harlow)



Dedicatória da primeira edição(1963):


Para os meus dois filhos:


Para ti Raul José, homem há muito- e homem autêntico-,que aprendeste à tua custa que a verdadeira coragem é a força do coração...

Para ti Alexandre,ainda criança,mas já com todas as tendências para não te tornares num desses falsos adultos que sujam o mundo e odeiam a Imaginação...

Para os meus dois filhos-o homem e a criança-este Divertimento escrito por quem sempre sonhou conservar a Criança bem viva no Homem.


XI

O João Medroso


A certa altura da Floresta Branca que, segundo os cálculos de João sem medo, devia bordejar o almejado Muro, rente a Chora-Que-Logo-Bebes, o nosso herói enxergou, sentada no pedregulho do carreiro uma menina debulhada em lágrimas.
- Bem...-sorriu com gozo patente.Cá temos a menina fatal em altos prantos no meio do caminho, como é uso nos países dos contos mágicos. Agora, para não trair a tradição, compete-me acercar-me da pequena e desenrolar o questionário da praxe:«Porque choras tu anjinho?»...etc.Ao que ela me retribuirá com a cantilena dos seus infortúnios...
«Pois bem:NÃO.Recuso-me a colaborar na farsa. Nasci em Chora-Que-Logo-Bebes, e as lágrimas não me fazem mossa. Chora, chora à vontade, minha rica.»
E num desdém empertigado, João Sem Medo marcou a dureza da indiferença com meia dúzia de passadas firmes.
Esta atitude fora do programa feriu visivelmente a menina que logo, por instinto de vingança esganiçou o choro em silvos afiados, mais de perrice do que de pesar.
-Hi-i-i-i-i-i-i-i...
-Pois sim, rala-te - monologava o rapaz...-Querias conversa, não? Porque choras tu, anjinho, hem?Espera por isso.
Mas quando já ia à distância de vinte metros e se julgava a salvo do calisto episódio sentimental, eis que a míuda, numa resolução expedita, deitou a correr até o filar.
-Seu descarado!-travou-lhe o braço, zangadíssima.- Então nem sequer investigas a razão da minha dor,hem?Sou para aqui uma boneca de farelos ou quê?
E instigou-o refilona:
-Vá imbecil!...Cumpre o teu dever e pergunta-me porque choro.Lembra-te de que vivo sózinha no mundo...Meu pai morreu.Minha mãe, entrevadinha das pernas, cose o dia inteiro para sustentar a família.E o meu irmão...
Neste passo(quantas vezes teria ela repetido este episódio?)saltaram-lhe lágrimas como continhas de água. E João Sem Medo, apesar dos propósitos de frieza deliberada, não resistiu ao enternecimento que pouco a pouco lhe aquecia o coração e apertava o nó de soluços na garganta:
-Que aconteceu ao teu mano?
-não sei...choramingou a menina a enchugar as lágrimas das faces.-Perdeu-se há dias na Floresta quando andávamos a colher amoras e framboesas fravas para o almoço...Talvez o devorassem os lobos. Ou pior ainda: talvez a Bruxa o arrebatasse...A Bruxa da Felicidade-à -Força.
-A Bruxa da Felicidade-à-Força? Que raio de nome! ...Porque desconfias dela? É horrível ,dizem.Ou melhor supõem pois até hoje ninguém viu se não as vítimas...(CONT)


José Gomes Ferreira (Aventuras de João Sem Medo)

terça-feira, janeiro 02, 2007

Reflexos do Olhar LXXII

(Aguarelas de Turner) - A Desped


segunda-feira, janeiro 01, 2007

No princípio a casa foi sagrada...




Habitação

Muito antes do chalet
Antes do prédio
Antes mesmo da antiga
Casa bela e grave
Antes de solares palácios e castelos
No princípio
A casa foi sagrada –
Isto é habitada
Não só por homens e por vivos
Mas também pelos mortos e por deuses

Isto depois foi saqueado
Tudo foi reordenado e dividido
Caminhamos no trilho
De elaboradas percas

Porém a poesia permanece
Como se a divisão não tivesse acontecido
Permanece mesmo muito depois de varrido
O sussurro de tílias junto à casa de infância


Sophia de Mello Breyner

Reflexos do Olhar LXXI

"Aguarelas de Turner"- pequenas surpresas