domingo, junho 24, 2007

Em frente à porta havia uma arca enorme...



É todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo a claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas- uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas
e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio da casa do Adro.
Minha mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos dias vi essas casitas onde eu e a mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas mesmo que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.
Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm : roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e a faca embrulhados num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir- é um cheiro forte, são frutas naturais que a terra dá.
Ora um dia, quando me aproximei da arca-sabe-se lá se para dar a entender que queria pão- estava lá em cima uma coisa que eu nunca tinha visto. Em bicos de pés, deitei-lhe a mão e puxei.Então o que sucedeu foi maravilhoso: de dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz da minha mãe, que certamente, eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe cantar. Minha mãe era nesse tempo uma mulher triste.
Da casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar.Foi nesse quarto que a mãe me ensinou a rezar.(...)
Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que com as orações:
Ó Ti Ana! Ti Ana!
Faça-me um favor!
- Que é? perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:
- Empreste-me a sua pele
pra fazer um tambor!
Mas isso foi bastante depois.(...)

Eugénio de Andrade

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