segunda-feira, março 05, 2007

ESCRITOR EXCELENTÍSSIMO



Quando Alface morreu, na súbita noite de quinta-feira, o Campo Pequeno continuava económico lá fóra e o tempo era favorável, caloroso, na comunidade de leitores que, devagar, o descobriam.
Os gregos chamavam "Kairos" ao momento oportuno, ao tempo distenso, aquele em que a vontade dos deuses e dos homens se encontra e o sujeito assume a absoluta figura do seu destino.(Assim era.)
Alface é um grande escritor, autor de uma prosa de uma liberdade extrema, e senhor de um virtuosismo idiomático ímpar.
Co-autor com Manuel da Silva Ramos, num singular jogo a quatro mãos, do infausto monumento à língua e ao carácter de um povo a que deram o título da trilogia TUGA ( Os Lusíadas, 1977, "As Noites Brancas do Papa Negro", 1982 e "Beijinhos", 1996). Homenagem e meditação ficcional ao "Portugal à solta" e atletismo subversivo sobre a pátria que ri, sobre a pátria que chora, como diriam os autores. Hip! Up!Heia!
A solo Alface publicou, em 1995,"Cuidado com os rapazes", que se seguirá, em 1999,"O Fim das Bichas",contos reunidos posteriormente em "A mais velha profissão do Mundo"(2006), em boa hora dedicado a Maria Antonieta; conta-se que ela, sob a guilhotina, foi acometida por um infindável ataque de riso, e a tal episódio deve a arte do conto a sua sobrevivência tenaz e felicidade. Escrever foi para Alface pôr a cabeça no cepo.
Alface é autor, ainda, de cinco histórias "juvenis" agrupadas sob o título de "Uma Família sem Mestre"(1997/2001).Em 2004 publica o romance "Cá vai Lisboa", comédia electrificada pelo humor, exemplo de literatura no seu melhor, longínqua do esquema académico e do reconhecimento pequeno-burguês.
Por detrás das suas sete dioptrias Alface topava-nos na nossa lusa alma de barata, com pessimismo, ironia e superior inteligência. Em resumo: "palavra festa brava".Alface escreveu, ainda, para jornais, publicidade, rádio, televisão e cinema sem nunca desvirtuar, no gosto da escrita, a liberdade que considerava ser a sua essência e justificação.
O João Carlos foi um homem livre e generoso. Era mordaz e, havia dias, um céptico quase pirrónico. Possuía um humor swiftiano, desconcertante lúcido e aristocrático.
Dançava.
Gostava muito do Alentejo, do Benfica, de ler. De ler por exemplo o Gombrowicz, o Maurice Pons, mas gostava também da Associação Pedrista de Montemor-o-Novo e da boa cozinha destas terras. Era ouvinte delicado.
Habitava-o uma humanidade que a inteligência não destruía. Talvez por isso não tenha acabado os cursos dedireito e psicologia, preferindo uma lateral "ars" de viver.
Aprendi muito com ele( Só não gostava apaixonadamente de gatos, algo que nos separava). Foi dos meus autores o mais leal, o mais justo. E nunca usou grandes sapatos no escritório. Tinha um narcisismo de vida e gostava de jantar em família, a sós, ou com o Carlos Campos, o Victor, o Bicker e muitos outos. O Alface tinha uma disponibilidade imensa e muitos amigos,e muitas amigas.
Ele faz-me muita falta. O Alface faz-nos muita falta.
E só não faz falta à literatura portuguesa porque escreveu depressa e partiu cedo, sem prosa algaliada a atranvancar a loja, pelo que os seus livros vão andar muito tempo por aí, numa luminosidade inconveniente.
O João Carlos, filho de médico que desprezava a medicina para uso próprio, foi um pai porreiro e as filhas dançam, pintam e são muito bonitas.
Por vezes desconcertava-nos em Veneza, no Carnaval, por um aparente desinteresse, um apartente fastio do sonho. Porém ficava bonito a caminhar no Lido, a caminhar em Veneza.
Na quinta-feira, na súbita noite em que Maria João(Seixas) e mais trinta pessoas liam amorosamente o seu romance "Cá Vai Lisboa", ficou durável em um raio trágico o verso de Salvadore Quasimodo: "A vida é apenas um jogo de sangue/ onde a morte está em flor". Na casa de Benfica vou pedir à Gina Frazão para pormos bem alto o velho vinil de Vírginia Astley e talvez o Alface possa voltar a ser o rapaz do trapézio voador na certeza de que a recordação é o mais seguro terreno do amor.
Editor & Cúmplice

(Vasco Santos.Editor da Fenda)Publicado no Jornal "O Público" de 5/03/07

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