sábado, março 31, 2007

Reflexos do Olhar LXXVII

(Aguarelas de Turner) Sesimbra, fortaleza por dentro

Crê.... que todas as metáforas são pouco...




Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.



Reinaldo Ferreira
Poemas
Estudo de José Régio
Prefácio de Guilherme de Melo
o chão da palavra/poesia

sexta-feira, março 30, 2007

Traz à compreensão todos os sentimentos recalcados...

(Modigliani)

Exortação


Em nome do teu nome,

Que é viril,

E leal,

E limpo, na concisa brevidade

— Homem, lembra-te bem!

Sê viril,

E leal,

E limpo, na concisa condição.

Traz à compreensão

Todos os sentimentos recalcados

De que te sentes dono envergonhado;

Leva, dourado,

O sol da consciência

As íntimas funduras do teu ser,

Onde moram

Esses monstros que temes enfrentar.

Os leões da caverna só devoram

Quem os ouve rugir e se recusa a entrar,

(Miguel Torga)

quinta-feira, março 29, 2007

esse tom de voz já o ouvira ele........

(Manet)


O literato inveja o pintor, gostava de fazer esboços, tomar notas, e está perdido se o faz. Mas, quando escreve, não há um gesto das suas personagens, um tique, um tom de voz que não lhe tenha sido trazido à inspiração pela memória, não há um nome de uma personagem inventada por trás do qual ele não possa situar sessenta nomes de personagens que viu, uma das quais pousou para o trejeito, outra para o monóculo, esta para a cólera, aquela para o imponente movimento do braço, etc. E então o escritor verifica que, embora o seu sonho de ser pintor não seja realizável de um modo consciente e voluntário, a verdade, porém, é que se concretizou, e que também o escritor, sem o saber, fez o seu caderno de esboços. Porque movido pelo instinto que estava dentro de si,o escritor, muito antes de acreditar vir a sê-lo um dia, deixava regularmente de observar tantas coisas em que os outros reparam, o que fazia com que esses outros o acusassem de distracção e ele próprio se acusasse de não saber ouvir nem ver, e entretanto ordenava aos seus olhos e aos seus ouvidos que retivessem para sempre o que aos outros pareciam ninharias pueris- o tom de voz com que uma frase foi pronunciada, e a expressão de rosto e o movimento de ombros em certo momento de uma pessoa acerca da qual talvez não soubesse mais nada há muitos anos, e isto porque esse tom de voz já o ouvira ele, ou sentia que poderia tornar a ouvi-lo, que era algo repetível e duradouro; é o sentido do geral e poderá entrar na obra de arte.


Marcel Proust ( O Tempo reencontrado)

terça-feira, março 27, 2007

Onde nada se move, uma estrela suspensa...


(Adams)


Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.


(Maria Alberta Menéres)

segunda-feira, março 26, 2007

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave...

(Aguarelas de Turner)

DA MINHA ALDEIA vejo quando da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.



Alberto Caeiro, em "O Guardador
de Rebanhos".

domingo, março 25, 2007

UM DOMINGO COM BORIS CYRULNIK e com um menino que fez ontem dois meses...



O encantamento surge desde os primeiros minutos após o nascimento, quando o recém-nascido chupa os captores sensoriais a que é mais sensível.
O feto já sentira as informações que o vinham tocar e a que respondia por explorações comportamentais durante as deslocações maternas, mudanças de postura e grandes ruídos. Porém, o bebé, no fim da gravidez, preferiria, claramente,a palavra da mãe que,tal como uma carícia, entrasse em contacto com os seus lábios e as suas mãos para neles vibrar suavemente. Então, responderia levando à boca tudo o que agarrasse, e engoliria todos os dias líquido amniótico,provando,deste modo,a mãe quando a ouvisse.
Depois do nascimento, o simples facto de viver num mundo aéreo alterou a forma dos estímulos: a luz tornou-se mais viva, o ar mais frio e os choques mais duros. Porém, estamos a esquecer de falar numa perturbação vital: a secura! Após nove meses de universo aquático,morno e protector, em redor do seu corpo,mas também na boca e no nariz, houve , subitamente, que secar!Teve frio, teve sede, e estas duas privações iniciais tornaram-no sensível à tepidez dos braços que o envolviam e à humidade do mamilo que lhe apresentavam. Soube prendê-lo na boca e representar o inverosímil argumento comportamental da primeira mamada, porque se treinara muito antes de nascer, quando a mãe, ao falar, o convidara a explorar com a boca e as mãos tudo o que flutuava.
A partir dos primeiros minutos após o nascimento, foi uma carência, uma perda de calor e humidade nutritiva que o tornou ávido do encantamento. Esta privação sensibilizou-o para o objecto sensorial composto pelo corpo morno e abrangente da mãe e por um mamilo odorífero e que segrega colostro, o primeiro leite diluído que permite ao bebé reencontar um pouco do universo aquático desaparecido e de nele se humidificar. Foi, pois, uma perda, um pequeno sofrimento, que o tornou ávido de encontrar qualquer objecto que evocasse o oceano passado onde se banhava.Não poderia ser enfeitiçado por uma agulha, um clarão vivo ou um empurrão, quando um objecto sensorial que evoca um vestígio inscrito na sua pequena memória pôde capturá-lo, para sua grande felicidade.
O argumento comportamental do primeiro encontro talvez constitua a metáfora que tematiza a nossa sobrevivência e explica a necessidade de nos enfeitiçarmos. O recém-nascido que não encontrasse um mamilo não poderia sobreviver, mas, para que se lhe agarre, é preciso que uma carência o tenha tornado sensível. O primeiro encantamento exige um corpo de mãe e um sis tema nervoso de bebé sensiblizado por uma carência.

(Boris Cyrulnik) Do Sexto Sentido. O Homem e o Encantamento do Mundo.

sábado, março 24, 2007

´Põe pregos de resistência ...tranca as portas da razão...

(Murillo)
Amor é um carpinteiro
Que ri com ar de matreiro,
Cerrando forte e ligeiro
Na tenda do coração...
Com toda a proficiência
Põe pregos de resistência,
Ferrolhos na consciência,
Tranca as portas da razão

(Adelaide de Castro Alves Guimarães)

quinta-feira, março 22, 2007

Emergem risos lágrimas promessas...


(Doisneau)

Retrato de corpo inteiro

No azul do teu peito
ensolarado
há espelhos de cristal
multiplicando imagens.


Emergem risos
lágrimas
promessas
olhares infantis
perdidamente
infinitamente
apaixonados
adolescentes.


A vida renasce
das tuas mãos
tremulas
entrelaçadas
— há muito tempo entrelaçadas —
Reencontradas.


No espaço secreto
da memória,
nosso retrato
- De corpo inteiro -
É o quadro mais bonito
que se pode iluminar.

(Ana Maria Feitosa)

quarta-feira, março 21, 2007

FESTEJEMOS A PRIMAVERA E OS POETAS!

(Aguarelas de Turner) flores da Grécia

Desta vez é a vossa vez...Deixo-vos apenas o mote...
Porque não?

Que a palavra salte, se una e se confunda nas cores...que a palavra deixe música nas cores que pinta...que a palavra vibre e tenha nas mãos o brilho de cada olhar...que a palavra seja, precisamente, o calor da pele incendiada...que a palavra abra a porta a quem quizer entrar...que a palavra ponha em palavras esta imensa confusão de ser...


( os poemas deverão ser enviados para o mail para sua publicação posterior)

terça-feira, março 20, 2007

A grade da noite degelou...

(Briullov)


Agora é tempo
de novamente libertar os pássaros
A grade da noite degelou.
Brilha luz em todas as varetas
flui
desfaz-se.
Para o outro lado resvalam
claras vozes de crianças.
Algo cintilante e solto
flameja
foge.

Atravessa o vidro
deixa vestígios de luz no azul
já longe como se em retorno
o espaço alvo e claro.

(Alois Hergouht)

sábado, março 17, 2007

Reflexos do Olhar LXXVI

(Aguarelas de Turner) a força da cor

é uma coisa que desliza por cima das lagoas...



O Amor

é uma coisa que desliza
por cima das lagoas
que corre pelos campos sem sentido
que empurra o vento
e apruma o sol no solstício
que derruba a bruma e fecha o horizonte
que nos faz ver de noite e de dia cegos
tacteando o ar sem provimento
que dá o movimento aos astros
e às sombras infinitas
que abre o mar por onde os escravos passam
e ficam livres sem saber
é a cascata que nos dilui
e lança na corrente sem perfídia
até ao oceano dos sentidos
é o iceberg que se funde
e derrota os titanics
que passam solitários pelas albas
é o assombro da manhã
o cantar dos ralos nas searas
o despertar das aves e rebanhos
o charco onde crescem amarelo e roxo
as flores da primavera


é só eu e tu
como nas novelas



Henrique Ruivo
branco azul ocre
Difel

quinta-feira, março 15, 2007

As vespas vão voltar a procurar as rosas...



(Gowin)

Canção de Março

Uma criança chega
molhada de outro tempo
as nuvens que a protegem
são a carne do mar

O passado é um lapso
quando a memória troca
os dias de penumbra
pla boca que devora

A criança retida
nos espasmos do ar
recupera a paisagem do seu antigo exílio

As vespas vão voltar
a procurar as rosas
como um pastor deitado
numa cama de rocha

O corpo refreando a
ansiedade abriga
a incompleta infância
que lhe serve de guia

(Gastão Cruz) Crateras

terça-feira, março 13, 2007

Há flores que de ti dependem...

(Almada Negreiros)

Um Dos Capítulos

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

(Albano Martins)
Escrito a Vermelho

segunda-feira, março 12, 2007

Olha o céu e a sua verde tatuagem de estrelas...




ESCRITO COM TINTA VERDE

A tinta verde cria jardins, selvas, prados,
folhagens onde gorjeiam letras,
palavras que são árvores,
frases de verdes constelações.

Deixa que minhas palavras, ó branca, desçam e te cubram
como uma chuva de folhas a um campo de neve,
como a hera à estátua,
como a tinta a esta página.

Braços, cintura, colo, seios,
fronte pura como o mar,
nuca de bosque no outono,
dentes que mordem um talo de grama.

Teu corpo se constela de signos verdes,
renovos num corpo de árvore.
Não te importe tanta miúda cicatriz luminosa:
olha o céu e sua verde tatuagem de estrelas.

(Trad. Haroldo de Campos)

(Octavio Paz)

domingo, março 11, 2007

Reflexos do Olhar LXXV

(Aguarelas de Turner) algures pela Escócia

UM DOMINGO COM MARGUERITE YOURCENAR



VERSOS ÓRFICOS

Según las tablillas encontradas en
tumbas de Grecia y de Grecia Grande

En el umbral de la puerta negra,
A la derecha, a los pies de un álamo,
Corre el agua de olvidar.

Brota a la izquierda el agua de Memoria;
Cristal helado, frío licor,
El agua de Memoria está en mi corazón.

Allí beben mi pena y mi alegría;
Residen en su ribera los sabios:
Yo les diré, Temo la muerte.

Soy hijo de la tierra negra
Pero también del cielo estrellado;
¡Abridme la puerta de la gloria!

La imagen del tiempo transcurrido
Se refleja en mi memoria;
El espejo puro no se enturbia.

Abridme el pozo de la gloria...

Versión de Silvia Barón

(Marguerite Yourcenar)

sábado, março 10, 2007

Reflexos do Olhar LXXIV

(Aguarelas de Turner) Janela para a Vida

Era o mistério dos seios...

(Boticelli)


Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
... Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebecem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.


Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu...


Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

(Manuel da Fonseca)

O céu era açuc ar lu minoso....

(Zéro Zoo)
o
céu
era
açuc ar lu
minoso
comestível
vivos
cravos tímidos
limões
verdes frios s choc
olate
s.

so b,
uma lo
co
mo
tiva c uspi
ndo
vi
o
letas.

( tradução: Augusto de Campos )


(E.Cummings)

sexta-feira, março 09, 2007

Reflexos do Olhar LXXIII

(Aguarelas de Turner) Transparências

quinta-feira, março 08, 2007

todos teníamos envidia de las mariposas...


(Dave Bruce Johnson)

La lengua de las mariposas (fragmento)

" El maestro aguardaba desde hacía tiempo que le enviaran un microscopio a los de la instrucción pública. Tanto nos hablaba de como se agrandaban las cosas menudas e invisibles por aquel aparato que los niños llegábamos a verlas de verdad, como si sus palabras entusiastas tuvieran un efecto de poderosas lentes.
-La lengua de la mariposa es una trompa enroscada como un resorte de reloj. Si hay una flor que la atrae, la desenrolla y la mete en el cáliz para chupar. Cuando lleváis el dedo humedecido a un tarro de azúcar ¿a que sienten ya el dulce en la boca como si la yema fuera la punta de la lengua? Pues así es la lengua de la mariposa.
Y entonces todos teníamos envidia de las mariposas. Que maravilla. Ir por el mundo volando, con esos trajes de fiesta, y parar en flores como tabernas con barriles llenos de jarabe.
(...)
Desde la cima del Sinaí no se veía el mar sino otro monte más grande todavía, con peñascos recortados como torres de una fortaleza inaccesible. Ahora recuerdo con una mezcla de asombro y nostalgia lo que tuve que hacer aquel día. Yo sólo, en la cima, sentado en silla de piedra, bajo las estrellas, mientras en el valle se movían como luciérnagas los que con candil andaban en mi búsqueda. Mi nombre cruzaba la noche cabalgando sobre los aullidos de los perros. No estaba sorprendido. Era como si atravesara la línea del miedo. "

Manuel Rivas

El Poder de la Palabra
www.epdlp.com
Barcelona - Nueva York

Novo modo de morte e nova dor...




Sempre a Razão vencida foi de Amor

Sempre a Razão vencida foi de Amor
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

(Luís Vaz de Camões)

quarta-feira, março 07, 2007

REFLEXOS DO OLHAR LXXII

(Aguarelas de Turner) Luz e cor

terça-feira, março 06, 2007

Ninguém me peça definições...

(Caillebotte)


Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...



A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe



Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...



Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?



Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...



Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.



Como, pois sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...



Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...



Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.



Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!


(José Régio)

segunda-feira, março 05, 2007

ESCRITOR EXCELENTÍSSIMO



Quando Alface morreu, na súbita noite de quinta-feira, o Campo Pequeno continuava económico lá fóra e o tempo era favorável, caloroso, na comunidade de leitores que, devagar, o descobriam.
Os gregos chamavam "Kairos" ao momento oportuno, ao tempo distenso, aquele em que a vontade dos deuses e dos homens se encontra e o sujeito assume a absoluta figura do seu destino.(Assim era.)
Alface é um grande escritor, autor de uma prosa de uma liberdade extrema, e senhor de um virtuosismo idiomático ímpar.
Co-autor com Manuel da Silva Ramos, num singular jogo a quatro mãos, do infausto monumento à língua e ao carácter de um povo a que deram o título da trilogia TUGA ( Os Lusíadas, 1977, "As Noites Brancas do Papa Negro", 1982 e "Beijinhos", 1996). Homenagem e meditação ficcional ao "Portugal à solta" e atletismo subversivo sobre a pátria que ri, sobre a pátria que chora, como diriam os autores. Hip! Up!Heia!
A solo Alface publicou, em 1995,"Cuidado com os rapazes", que se seguirá, em 1999,"O Fim das Bichas",contos reunidos posteriormente em "A mais velha profissão do Mundo"(2006), em boa hora dedicado a Maria Antonieta; conta-se que ela, sob a guilhotina, foi acometida por um infindável ataque de riso, e a tal episódio deve a arte do conto a sua sobrevivência tenaz e felicidade. Escrever foi para Alface pôr a cabeça no cepo.
Alface é autor, ainda, de cinco histórias "juvenis" agrupadas sob o título de "Uma Família sem Mestre"(1997/2001).Em 2004 publica o romance "Cá vai Lisboa", comédia electrificada pelo humor, exemplo de literatura no seu melhor, longínqua do esquema académico e do reconhecimento pequeno-burguês.
Por detrás das suas sete dioptrias Alface topava-nos na nossa lusa alma de barata, com pessimismo, ironia e superior inteligência. Em resumo: "palavra festa brava".Alface escreveu, ainda, para jornais, publicidade, rádio, televisão e cinema sem nunca desvirtuar, no gosto da escrita, a liberdade que considerava ser a sua essência e justificação.
O João Carlos foi um homem livre e generoso. Era mordaz e, havia dias, um céptico quase pirrónico. Possuía um humor swiftiano, desconcertante lúcido e aristocrático.
Dançava.
Gostava muito do Alentejo, do Benfica, de ler. De ler por exemplo o Gombrowicz, o Maurice Pons, mas gostava também da Associação Pedrista de Montemor-o-Novo e da boa cozinha destas terras. Era ouvinte delicado.
Habitava-o uma humanidade que a inteligência não destruía. Talvez por isso não tenha acabado os cursos dedireito e psicologia, preferindo uma lateral "ars" de viver.
Aprendi muito com ele( Só não gostava apaixonadamente de gatos, algo que nos separava). Foi dos meus autores o mais leal, o mais justo. E nunca usou grandes sapatos no escritório. Tinha um narcisismo de vida e gostava de jantar em família, a sós, ou com o Carlos Campos, o Victor, o Bicker e muitos outos. O Alface tinha uma disponibilidade imensa e muitos amigos,e muitas amigas.
Ele faz-me muita falta. O Alface faz-nos muita falta.
E só não faz falta à literatura portuguesa porque escreveu depressa e partiu cedo, sem prosa algaliada a atranvancar a loja, pelo que os seus livros vão andar muito tempo por aí, numa luminosidade inconveniente.
O João Carlos, filho de médico que desprezava a medicina para uso próprio, foi um pai porreiro e as filhas dançam, pintam e são muito bonitas.
Por vezes desconcertava-nos em Veneza, no Carnaval, por um aparente desinteresse, um apartente fastio do sonho. Porém ficava bonito a caminhar no Lido, a caminhar em Veneza.
Na quinta-feira, na súbita noite em que Maria João(Seixas) e mais trinta pessoas liam amorosamente o seu romance "Cá Vai Lisboa", ficou durável em um raio trágico o verso de Salvadore Quasimodo: "A vida é apenas um jogo de sangue/ onde a morte está em flor". Na casa de Benfica vou pedir à Gina Frazão para pormos bem alto o velho vinil de Vírginia Astley e talvez o Alface possa voltar a ser o rapaz do trapézio voador na certeza de que a recordação é o mais seguro terreno do amor.
Editor & Cúmplice

(Vasco Santos.Editor da Fenda)Publicado no Jornal "O Público" de 5/03/07

domingo, março 04, 2007

REFLEXOS DO OLHAR LXXI

(Aguarelas de Turner)

UM DOMINGO COM ANTONIO NAMONEDA


(Leighton)
AMOR

Mi manera de amarte es sencilla:

te aprieto a mí

como si hubiera un poco de justicia en mi corazón

y yo te la pudiese dar con el cuerpo.



Cuando revuelvo tus cabellos

algo hermoso se forma entre mis manos.



Y casi no sé más. Yo sólo aspiro

a estar contigo en paz y a estar en paz

con un deber desconocido

que a veces pesa también en mi corazón.


(Antonio Namoneda)

sábado, março 03, 2007

as coisas...cegas e estranhamente sigilosas...


(E.Manet)

AS COISAS

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.

(Jorge Luís Borges)Tradução de Ferreira Gullar

sexta-feira, março 02, 2007

A tirania exerce-se no âmago do indivíduo...


(Bacon)

(...)
Em vez da piedade, o que o autor do Elogio da Sinceridade reforça é a ideia que os homens vivem em comum para conseguirem a confiança mútua, devendo, afirma, dar a verdade uns aos outros.Mas, em vez disso, que fazem eles? Vivem escravos da necessidade de disfarçarem os sentimentos. Por conseguinte, a tirania exerce-se no âmago do indivíduo, quer dizer, transforma cada um em émulo de Naarciso, iludindo a sinceridade enquanto virtude básica da vida em comunidade. É deste modo que nos tornamos complacentes e fazemos disso um sistema de vida. Neste engano generalizado, onde se assume a baixeza e o fingimento como virtudes, enganamo-nos e felicitamo-nos, sob o pretexto de que isso é que todos fazem. Ao dizer que o exercício da sinceridade exige uma reinvenção da amizade, Montesquieu propõe uma reinvenção da ética, como se a liberdade ve a verdade residissem inteiras na força da sinceridade. A existir um eco qualquer na nossa vida, que seja um abrir do coração, e não uma aborrecida e monótona repetição do nosso narcisismo.

(José Manuel Heleno- "Abrir o coração"-posfácio do "Elogio da Sinceridade"-Montesquieu-ed.Fenda)

quinta-feira, março 01, 2007

C'est un rayon mouillé ... (post nº 400)








(Ingres)


Chacun en sa beauté...
Chacun en sa beauté vante ce qui le touche,
L'amant voit des attraits où n'en voit point l'époux ;
Mais que d'autres, narguant les sarcasmes jaloux,
Vantent un poil follet au-dessus d'une bouche ;

D'autres, sur des seins blancs un point comme une mouche ;
D'autres, des cils bien noirs à des yeux bleus bien doux,
Ou sur un cou de lait des cheveux d'un blond roux ;
Moi, j'aime en deux beaux yeux un sourire un peu louche :

C'est un rayon mouillé ; c'est un soleil dans l'eau,
Qui nage au gré du vent dont frémit le bouleau ;
C'est un reflet de lune aux rebords d'un nuage ;


C'est un pilote en mer, par un ciel obscurci,
Qui s'égare, se trouble, et demande merci,
Et voudrait quelque dieu, protecteur du voyage.

(Charles Sainte-Beuve)