Do fascismo propriamente dito, do que me lembro melhor é da chuva. Se alguém me pedisse para dizer a primeira coisa que me viesse à cabeça perante a palavra "fascismo", seria forçosamente "chuva".
Criança ainda, a minha imagem mais forte do fascismo são aqueles chuvosos finais de domingo que antecipavam uma semana na escola nas mãos e olhos pérfidos do professor Lagarto, uma mistura de professor e de ogre que esperava por nós diariamente no seu castelo amaldiçoado. Os inícios de domingo, ainda que chovesse, eram um espaço de liberdade: um dia sem ter de olhar para o mórbido crucifixo ao fundo da sala ou para os mapas das colónias pintados de um cínico colorido. Um domingo de brincadeira, em que a nossa alma não era lavada, esfregada, centrifugada para, finalmente, ser posta a secar ao vento.
E a angústia estava exactamente aí: na percepção de que, no fim de cada domingo, quando a escuridão já fazia adivinhar as trevas que desciam sobre as nossas vidas, a liberdade chegava ao fim, e em que a chuva, com a sua maldita humidade, passava a criar bolor numa alegria que degenerava facilmente em angústia.
É engraçado. Hoje, por muito que pense no fascismo de um ponto de vista político económico, social, económico, cultural, é sempre a imagem da chuva que prevalece. A chuva não é, neste sentido, nem um conceito, nem uma sensação: é ambas as coisas. A chuva, enquanto forma pessoal e íntima de lembrar o fascismo, tal como certos cheiros ou sabores, dá-me ao conceito de fascismo uma imagem ou sensação. Ao pensar nos obscuros finais de domingo, a chuva permite juntar o pensamento e a sensação numa única gaveta.
Como nunca fui preso, censurado, torturado, exilado, o fascismo, para mim, está todo concentrado naquela atmosfera fria, cinzenta e chuvosa que transformava a liberdade de domingo em angústia de domingo.
O 25 de Abril, por isso, teria de ser um cinzento e chuvoso: uma despedida, um epílogo, um pouco como aquilo que fazemos quando nos vamos embora de um sítio e, por uma última vez, viramos a cabeça para guardar uma imagem final. É por isso que o verdadeiro 25 de Abril não foi no dia 25 de Abril. O 25 de Abril a sério foi no primeiro 1ºde Maio. Nesse dia, lembro-me bem, o dia despertou com sol. E a chuva, nesse dia, não passou de uma inofensiva recordação. Tão inofensiva que já nem sequer precisava de um chapéu de chuva para a memória ter de se abrigar.
in "PONTEIROS PARADOS"- José Ricardo Costa- http://ponteirosparados.blogspot.com
Na crónica de José Ricardo Costa sobre o 25 de Abril é a "alma" da criança presente no homem de hoje que narra, sensorialmente, a opressão então presente em todos os momentos da nossa vida. O seu professor Lagarto era congénere da minha professora da 2ª classe, D. Idalina, de alguns anos antes, que sabendo-me não-católica, não-apostólica, não-romana, e, portanto, resistente às suas orações matinais, me levava a ajoelhar-me no estrado voltada para a classe inteira. Era assim, nas coisas mais pequenas e mais simples. É por isso que a chuva deve ser aqui chamada. Era ela também que eu evocava quando desejava que as cadernetas das D.Idalinas se dissolvessem nas águas de Inverno durante o meu trajecto para casa. A chuva das nossas angústias e das nossas lágrimas caladas.
Tanto o texto do Ricardo como o teu, só poderão parecer um tanto inesperados a quem não viveu esses tempos sinistros.
ResponderEliminarAo ler-vos, também eu revivi essa angústia deprimente dos finais de domingo.
Eu ia ver o futebol e, no final do jogo sentia-me sempre mal, com a ideia de que ia enfrentar mais uma semana de tédio e medo nos bancos da escola.
Não estava cá no 1º 1º de Maio.Com muita pena minha, eu que tanto ansiei pela queda das mordaças no meu país, não assisti a esses momentos únicos.
Mas, mesmo longe, senti que "a chuva das nossas angústias e das nossas lágrimas caladas" iam começar a ser passado.
E foi também chuva, mas outra, que rolou da emoção dos nossos olhos no 1º de todos os Maios livres que vivemos.
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