terça-feira, janeiro 31, 2006

É uma ave estranha: colorida...


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.


Donde teria vindo! ( Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandato de captura ou de despejo?


É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.


E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar..


Alexandre O'Neill (No Reino da Dinamarca)

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Pesados eram os jarros...


OS JARROS


Pesados eram os jarros, mas qundo os encheram
de vinho puro,

tornaram-se leves, e quase levantaram voo com
sua carga preciosa, do mesmo modo que os corpos
se aligeiram com os espíritos.


( Idris Ben Al-Yaman )

domingo, janeiro 29, 2006

Não caibo nesta tarde que me desfolhas sobre o coração...




COMPOSIÇÂO DE LUGAR

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que, lida
e soletrada, descubro inatingível como o vento, a rua e
a vida.
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores.
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora.
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo,
não há em mim memória de alguma morte,
em nenhum outro lugar me edifiquei.
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer,
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive.
Eu sei que só tu sabes o meu nome
- tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida.
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida.

Ruy Belo ( Aquele Grande Rio Eufrates)


sábado, janeiro 28, 2006

Lisboa


Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso - vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como
(se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas-
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo
( da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andersen (Lisboa com os seus Poetas)

NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE SERENA



Não entres docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia,
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os lábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras,eles
não entram docilmente nessa noite serena.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis acções ter dançado na baía verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o voo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
não entram docilmente nessa noite serena.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quando os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entre docilmente nessa noite serena.
Odeia, odeia a luz que começa a morrer.

Dylan Thomas ( A Mão ao Assinar Este Papel )

segunda-feira, janeiro 23, 2006

É travessa como uma criança...

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( Picasso)

É assim que a mulher exerce a sua tentação. As criaturas humanas trazem o que têm de mais magnífico para alimento dos deuses, não conhecem nada de mais magnífico que possam ofertar; também a mulher é um fruto para ser admirado, os deuses não conheciam nada que se lhe comparasse.Ei-la, aqui está, bem perto, presente, e contudo infinitamente longe, escondida no pudor, até ao momento em que ela mesma trai o seu esconderijo, embora não saiba como; o astucioso delator não é ela, mas sim a própiria existência. É travessa, como uma criança que brinca ás escondidas e que espreita do esconderijo, e contudo a travessura dela é inexplicável pois que ela própria nada sabe de tal coisa, e é sempre enigmática, enigmática quando esconde os olhos, enigmática quando envia o mensageiro do olhar que nenhum pensamento consegue seguir e as palavras ainda menos. E contudo, se o olhar é o "intérprete" da alma, onde está afinal a explicação se também o intérprete fala de maneira inexplicável.(....)

Kierkegaard ( IN VINO VERITAS- trad José Miranda Justo)

domingo, janeiro 22, 2006

UM DOMINGO COM O POETA DE SEMPRE: EUGÉNIO

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Metamorfoses da Casa
1
Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

2
A casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.

3
Como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco...

4
Uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste, também voa.

5
Ah, um dia a casa será bosque,
à tua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.

Eugénio de Andrade ( Ostinato Rigore)

sábado, janeiro 21, 2006

Desfolha a luz desfolha a sombra...

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Mosteiro de Alcobaça

Desfolha a rosa e a rosásea
a beleza nasce uma só vez
desfolha a luz desfolha a sombra
na grande nave quase abstracta
a coroa e a pedra de Pedro e Inês

Desfolha a rosa e a rosásea
pétala a pétala os vitrais
e o número mágico e a geometria
o triângulo e o ponto das catedrais.

A beleza nasce uma só vez

não mais.

Manuel Alegre ( Dispersos e inéditos)

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Um tom para o ser

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UM TOM

Um tom pra cantar
Um tom pra falar
Um tom pra viver
Um tom para a cor
Um tom para o som

Um tom para o ser

Ah como é bom dormir
Ah como é bom despertar
O céu é mais aqui
Um tom é um bom lugar

Tanta coisa que cabe
Tanta pode caber
Canta e pode fazer cantar
Nova felicidade
Novo tudo de bom
Deixa-se cantar um tom

Um tom pra gritar
Um tom pra calar
Um tom pra dizer
Um tom para a voz
Um tom para mim
Um tom pra você

Um Tom para todos nós.


Caetano Veloso (Letra só)

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Nas cidades felizes...

monet-waterlilies.jpg
( Monet)
Epígrafe

As pontes multiplicam o cansaço.Porém, há duas margens para o deslumbramento
nas cidades felizes, é costume atravessar o rio sem lhe tocar.

Manuela Parreira da Silva (1950- O Álbum de Vishmu )