terça-feira, agosto 01, 2006

Chegar à Figueira na minha infância...

( Cassat)

Chegar à Figueira na minha infância passava sempre por gestos e palavras fixos. Já só conheci a minha bisavó com uma existência análoga à da Tia Léonie de Proust: acamada, mas sempre a dominar os três andares da casa com a força inquebrantável da sua personalidade. No dia em que a minha irmã e eu chegámos, a bisavó dizia que estávamos escanzelados e macilentos.No dia seguinte já parecíamos aos seus olhos "mais corados"; e dois dias depois a bisavó afiançava, dogmática, que os bisnetos estavam mais gordos. Duvido que a diferença se notasse em tão pouco tempo, mas lá que era fácil engordar naquela casa, disso não havia dúvida possível.
Era o tempo em que as compras eram feitas na praça. As enguias vinham vivas para casa em baldes e os caranguejos entravam vivos na panela de água a ferver, depois de terem passeado na copa e no páteo, para consternação minha e da minha irmã.(...)
A parte pior do dia era a manhã na praia ventosa. No mar nem se conseguia entrar; eu pensava com inveja nos meus pais, longe da Figueira a gozar férias no Algarve. Trágica era a pribição permanente da parte dos meus avós de se comprar bolacha americana aos vendedores que as apregoavam. Felizmente, sempre havia a perspectiva deliciosa do almoço da Raquel que nos esperava em casa. E as tardes podiam ser passadas a ler no quarto ou, porque os avós achavam que fazia mal passar a tarde inteira a ler, a passear de carro na Serra da Boa Viagem, sítio primordial e mágico. Os meus avós tinham lá um pinhal onde por vezes fazíamos "piqueniques": o desconsolo, por outras palavras, de comer uma refeição opípara da Raquel, já fria, no meio da selva com vespas e formigas.

Frederico Lourenço (Amar não acaba)

1 comentário:

  1. E todos nós nos lembramos de uma figueira ou outra qualquer árvore onde se pendurava a corda do baloiço dos sonhos...

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