(Millet)
Os sinos tocaram como se os sinos
ainda tocassem para anunciar as matinas
e vésperas. Quem os ouve já não ouve sequer
os sinos tocarem, e perdeu a memória do tempo
em que os sinos tocavam, e o tempo dos homens
era conduzido pelo toque dos sinos
que já ninguém ouve, atravessaste a rua e
fizeste com que eu, sem ouvir os sinos,
desse pelo toque de vésperas que soou
na minha cabeça, e me fez esperar que
as pessoas, ao longo da rua, parassem como
os lavradores do quadro de millet. E a rua
transformou-se num imenso campo; as searas
ocuparam o alcatrão; e os prédios foram como
as colinas verdejantes do fundo. Então,
voltaste-te para mim, do outro lado da rua, quando
os sinos deixaram de tocar, e
eu esqueci-me do tempo em que
o tempo era contado pelos sinos para
continuar o meu caminho, levando comigo
a tua imagem de camponesa no angelus
de millet.
(Nuno Júdice- Fórmulas de uma luz inexplicável)
Turner na liberdade das suas aguarelas dá-nos a emoção do olhar e do sentir em estado puro.Este espaço propõe-se convocar, pela voz dos que sabem, múltiplos instantes de vida: luz e sombra; esquecimento e memória; vida e morte...
"Seja qual fôr o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim"
S. Freud
sábado, junho 30, 2012
Fizeste com que eu...desse pelo toque de vésperas...
Olhar o mundo à minha volta,
gostar dos que me são queridos,
usar, da melhor maneira, aquilo, que julgo saber...
sábado, junho 09, 2012
Troquei as sombras por um sol lavado...
(Aguarelas de Turner)
ARTE POÉTICA
Surdo às palavras dos poetas fáceis.
Cego às imagens e ao mistério inútil.
Troquei as sombras por um sol lavado,
enjôo as cores da beleza fútil.
Poesia é - se a crio - a do real.
(Real o sonho, e sonho o descobri-lo.)
Prefiro este sabor de o tatear
às horas podres gastas a iludi-lo.
Sei pelo esforço o que a magia ignora.
Tenho asas tão leves nos sentidos
como as que nuvens de evasão vagueiam
por espaços só delas pressentidos.
Encontro em cada coisa o que é comum.
Reparto cada instante mais pequeno
da intimidade oculta dos meus gestos.
Sereno escrevo e a vós me dou sereno.
Sais o eco e o som da minha voz.
Amais a claridade e eu sou claro.
Dispo-me inteiro se preciso for
e no que é simples é que busco o raro.
(José Augusto Seabra)
Olhar o mundo à minha volta,
gostar dos que me são queridos,
usar, da melhor maneira, aquilo, que julgo saber...
quarta-feira, junho 06, 2012
Vai-me a essas rimas.....e torce-lhes o pescoço
(Miró)
Bom e expressivo
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.
Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,
tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,
diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-
dra que rola na pedra...
Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,
a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...
Alexandre O'Neill, in 'De Ombro na Ombreira'
Olhar o mundo à minha volta,
gostar dos que me são queridos,
usar, da melhor maneira, aquilo, que julgo saber...
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