sábado, junho 30, 2012

Fizeste com que eu...desse pelo toque de vésperas...

    (Millet)

Os sinos tocaram como se os sinos 
ainda tocassem para anunciar as matinas
e vésperas. Quem os ouve já não ouve sequer
os sinos tocarem, e perdeu a memória do tempo
em que os sinos tocavam, e o tempo dos homens 
era conduzido pelo  toque dos sinos
que já ninguém ouve, atravessaste a rua e
fizeste com que eu, sem ouvir os sinos,
desse pelo toque de vésperas que soou
na minha cabeça, e me fez esperar que
as pessoas, ao longo da rua, parassem como
os lavradores do quadro de millet. E a rua
transformou-se num imenso campo; as searas
ocuparam o alcatrão; e os prédios foram como 
as colinas verdejantes do fundo. Então,
voltaste-te para mim, do outro lado da rua, quando
os sinos deixaram de tocar, e
eu esqueci-me do tempo em que
o tempo era contado pelos sinos para
continuar o meu caminho, levando comigo
a tua imagem de camponesa no angelus
de millet.


(Nuno Júdice- Fórmulas de uma luz inexplicável)

sábado, junho 09, 2012

Troquei as sombras por um sol lavado...

    (Aguarelas de Turner)

ARTE POÉTICA

Surdo às palavras dos poetas fáceis.
Cego às imagens e ao mistério inútil.
Troquei as sombras por um sol lavado,
enjôo as cores da beleza fútil.

Poesia é - se a crio - a do real.
(Real o sonho, e sonho o descobri-lo.)
Prefiro este sabor de o tatear
às horas podres gastas a iludi-lo.

Sei pelo esforço o que a magia ignora.
Tenho asas tão leves nos sentidos
como as que nuvens de evasão vagueiam
por espaços só delas pressentidos.

Encontro em cada coisa o que é comum.
Reparto cada instante mais pequeno
da intimidade oculta dos meus gestos.
Sereno escrevo e a vós me dou sereno.

Sais o eco e o som da minha voz.
Amais a claridade e eu sou claro.
Dispo-me inteiro se preciso for
e no que é simples é que busco o raro.

 (José Augusto Seabra)

quarta-feira, junho 06, 2012

Vai-me a essas rimas.....e torce-lhes o pescoço



 (Miró)
                

    Bom e expressivo          
                                                 
Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.


Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia

se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,

que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra...

Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,

com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...

Alexandre O'Neill, in 'De Ombro na Ombreira'