A minha saudade tem o mar aprisionado
na sua teia de datas e lugares.
É uma matéria vibrátil e nostálgica
que não consigo tocar sem receio,
porque queima os dedos,
porque fere os lábios,
porque dilacera os olhos.
E não me venham dizer que é inocente,
passiva e benigna porque não posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres
agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,
amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede
das que não prendem pássaros nem peixes,
das que têm malhas largas
para deixar passar o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipócrita se dissesse
que esta saudade não me vem à boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta, e contudo
cresce em mim como um distúrbio da paixão.
José Jorge Letria, in "A Metade Iluminada e Outros Poemas"
Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso.
Não me tires a rosa, a flor de espiga que desfias, a água que de súbito jorra na tua alegria, a repentina onda de prata que em ti nasce. A minha luta é dura e regresso por vezes com os olhos cansados de terem visto a terra que não muda, mas quando o teu riso entra sobe ao céu à minha procura e abre-me todas as portas da vida. Meu amor, na hora mais obscura desfia o teu riso, e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri, porque o teu riso será para as minhas mãos como uma espada fresca. Perto do mar no outono, o teu riso deve erguer a sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero o teu riso como a flor que eu esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria sonora. Ri-te da noite, do dia, da lua, ri-te das ruas curvas da ilha, ri-te deste rapaz desajeitado que te ama, mas quando abro os olhos e os fecho, quando os meus passos se forem, quando os meus passos voltarem, nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas o teu riso nunca porque sem ele morreria.
Direito, esquerdo e algumas definições - mas voltemos às questões importantes. - O importante ...quer uma definição? Aquilo a que dou atenção, eis o importante. Quer outra definição? - Sim, Excelência. - A definição de definição. Definição significa de- finir. Finir, acabar. Dar uma definição é dizer a última palavra sobre o assunto . - É, pois, terminar a conversa. - Exacto. Conversa finita com a definição . - Quem define diz ao outro: nada mais tens a dizer sobre este assunto, pois acabei de dizer a última e definitiva palavra sobre a questão. - Uma conversa entre surdos é uma conversa em que os dois trocam definições. - Uma definição é definitiva, eis uma redundância bem redonda, se assim me posso exprimir. - E etc.e etc.e tal. - Muito bem, Vossa Excelência está a ver bem o assunto. - Seria interessante pensar em definições que iniciam a conversa. - Uma definição inicial, inaugural. Uma de-iniciação. - Ou uma pré- definição. Uma não- definição. E assim sucessivamente. - Bem...como eu estava a dizer: gosto de um pé que não se preocupa apenas em avançar. Gosto de um pé que descobre o caminho..que cada vez que toca o chão abre uma nova hipótese. Um pé que afasta a floresta para os lados e que faz uma estrada à medida que avança, uma estrada humana. -...para mim, os pés são um assunto menor, um assunto, como dizer... - É essa a grande função do pé, fazer uma estrada humana no meio da floresta desumana...floresta animalesca e até botânica ! - E até! - Que a floresta, no fundo, se reparar bem, é botânica selvagem. - Uma floresta botânica, que surpreendente! Mas falava do pé, não continua? -...um jardim botânico é compreensível, mas uma floresta botânica...Uma floresta mansa, digamos, eis o que surpreende. - E o pé, é o pé? - porque à floresta associamos terríveis animais carnívoros capazes de nos arrancar a cabeça com uma dentada involuntária. Com uma dentada mansa... -Os animais selvagens são capazes de nos engolir com um apetite manso, um apetite tranquilo, muito bem! - Eles são selvagens e cruéis de uma forma natural. Sem esforço, Excelência. -Praticam a crueldade como quem pratica fitness ao domingo. São mais, cruéis para manter a forma, para não ganhar barriga...para não se aburguesarem, no fundo. A crueldade animalesca como actividade de laser. - Pois bem, sim, mas voltemos aos pés. - Ok. -... o que me interessa agora é pensar como é que alguém , só com um pé, abre caminho humano para os dois lados, o esquerdo e o direito... - ...no fundo, é uma questão de lateralidade. - Sim, mas estou a pensar em alguémque atravessa a floresta ao pé - cochicho. - Ao pé -cochicho? - Sim...é difícil pensarmos no lado esquerdo e direito de um pé, poisestamos habituados a pensar em pé direito e pé esquerdo, os dois juntos.. - Isso. -... o que está ao lado direitodo pé direito e o que está ao lado esquerdo do pé esquerdo...Se pensarmos num único pé, por exemplo no pé esquerdo..se for assim, o lado esquerdo da floresta está do lado esquerdo do pé esquerdo, tal é normal...agora , já é muito estranho pensarmos que o lado direito da floresta está à direita desse pé esquerdo. Porque o lado direito da floresta costuma estar do lado direitodo pé direito. Percebe o problema de quem anda na floresta só com um pé? -Percebo, embora um desenho ajudasse...De qualquer maneira, o problema que põe é muito relevante, sem dúvida, mas estou atrasado. Vou comprar sapatos. - Sapatos? - Dois. - Aperto-lhe a mão com extrema reverência e digo adeus a Vossa Excelência. Vou para o lado direito do pé direito. - Muito bem. É uma boa hipótese, sem dúvida! Adeus, meu caro. Gonçalo M. Tavares - O torcicologologista, excelência.
Eu queria cantar para dentro de alguém, sentar-me junto de alguém e estar aí. Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres. Queria ser o único na casa a saber: a noite estava fria. E queria escutar dentro e fora de ti, do mundo, da floresta. Os relógios chamam-se anunciando as horas e vê-se o fundo o tempo. E em baixo ainda passa um estranho e acirra um cão desconhecido. Depois regressa o silêncio. Os meus olhos, muito abertos, pousaram em ti; e prendem-te docemente e libertam-te quando algo se move na escuridão.