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
Turner na liberdade das suas aguarelas dá-nos a emoção do olhar e do sentir em estado puro.Este espaço propõe-se convocar, pela voz dos que sabem, múltiplos instantes de vida: luz e sombra; esquecimento e memória; vida e morte...
"Seja qual fôr o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim"
S. Freud
sábado, março 31, 2012
É o leito da borboleta...
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quarta-feira, março 28, 2012
Leve-me para o fim do sonho...
Na Noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia. Quando saiu faltavam vinte minutos para as oito, e ás oito em ponto estava na estação do Rossio, na plataforma do comboio com destino a Santarém. O comboio partiu pontualmente às oito e cinco. Fernando Pessoa tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou uma tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco?, perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado , com um nariz vermelho de álcool. Claro, disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-a bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós ?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, então estava então na África do Sul, era isso mesmo que eu queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças de marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu com volúpia. Ofereceu também um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com as telhas vermelhas com beirais. A tipoia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo. À porta percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos dos pés, beijou-a nas faces. Não me canse muito meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas e o seu professor da High School.
Não sabia que Caeiro era o senhor, disse Fernando pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante.Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-ta de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar umas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre.
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sonho, às vezes hei-se perturbá-lo, outras não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido.
Antonio Tabucchi (Sonhos de sonhos)
Tabucchi deixou-nos cedo demais.
Fica connosco um romancista original e um grande apaixonado por Pessoa e Portugal.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou uma tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco?, perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado , com um nariz vermelho de álcool. Claro, disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-a bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós ?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, então estava então na África do Sul, era isso mesmo que eu queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças de marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu com volúpia. Ofereceu também um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com as telhas vermelhas com beirais. A tipoia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo. À porta percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos dos pés, beijou-a nas faces. Não me canse muito meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas e o seu professor da High School.
Não sabia que Caeiro era o senhor, disse Fernando pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante.Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-ta de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar umas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre.
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sonho, às vezes hei-se perturbá-lo, outras não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido.
Antonio Tabucchi (Sonhos de sonhos)
Tabucchi deixou-nos cedo demais.
Fica connosco um romancista original e um grande apaixonado por Pessoa e Portugal.
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quarta-feira, março 21, 2012
É urgente descobrir rosas e rios...
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
(Eugénio de Andrade )
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
(Eugénio de Andrade )
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quinta-feira, março 15, 2012
Não sei quem me sonho...
Chuva Oblíqua
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
Fernando Pessoa
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sábado, março 10, 2012
Nada mais?
18 de agosto de 1882
Oh, minha querida Marty, quanto pobres nós somos! Supõe que iríamos dizer ao mundo que estávamos a planear partilhar a vida e que eles nos perguntassem: qual é o vosso dote? Nenhum a não ser o nosso amor um pelo outro. Nada mais? Agora ocorre-me que precisaríamos de dois ou três pequenos quartos para viver, comer e receber as visitas, e um fogão onde o fogo para as nossas refeições nunca se apague. E pensa então em todas as coisas que temos de ter nesses quartos! Mesas e cadeiras, camas, espelhos, um relógio que lembre ao feliz casal a passagem do tempo, uma poltrona para uma hora diária de doces sonhos, tapetes que ajudem a manter os soalhos limpos, quadros na parede, serviços para o dia-a-dia e outros para ocasiões festivas, uma pequena despensa, e um grande molho de chaves-que têm de fazer muito barulho ao chocalharem umas nas outras. Teremos tanto para desfrutar, os livros, a mesa de costura e a lâmpada acolhedora, e tudo deverá estar sempre em boa ordem, ou então a dona de casa, dividiu o seu coração em pequenos pedaços, cada um para cada peça da decoração, irá chatear-se. E este objetivo deve ser testemunha do trabalho árduo que mantém o lar, do sentimento pela beleza, dos queridos amigos que queremos recordar, das cidades que visitámos, das horas que queremos lembrar. E, tudo isto, um pequeno mundo de felicidade, de amigos silenciosos e provas de elevados valores humanos, ainda se mantém só no futuro; ainda nem sequer desenhámos a fundação da casa, pelo que, por enquanto, apenas existem duas criaturas que se entretêm a amar-se uma à outra.
Iremos apoiar os nossos corações nestas coisas tão pequenas? Sim, e sem hesitação, por tanto tempo até que algum eventual evento fora do nosso controlo venha bater à nossa porta silenciosa. E claro teremos todos os dias que dizer um ao outro que nos continuamos a amar.
Sigmund Freud- Cartas a Martha
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quarta-feira, março 07, 2012
Pablo Alborán e Carminho, um dueto "perfeito"
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terça-feira, março 06, 2012
Ele o velho cantor dos heróis guerreiros...
A fome de Camões
Este vulto, portanto, que caminha
Altas horas, ao frio das nortadas,
É Camões que se definha
Nas ruas de Lisboa abandonadas.
É Camões que a sorte vil, mesquinha,
Faz em noites de fome torturadas,
Ele o velho cantor de heróis guerreiros!...
Vagar errante como os vis rafeiros.
Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo,
O seu amparo e seu bordão no mundo,
Morreu-lhe o humilde companheiro antigo,
No seu vácuo deixando um vácuo fundo.
Hoje, pois, triste, velho, sem abrigo,
Faminto, abandonado e vagabundo,
Tenta esmolar também pelas esquinas.
Ó lágrimas!... Ó glória! Ó ruínas!...
|
(Gomes Leal- A fome de Camões)
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domingo, março 04, 2012
Aos 108 Anos no "activo"- Alice Sommer Herz
Alice Sommer Hertz, sobrevivente do campos de concentração de Terezin, conseguiu atravessar a vida amando tudo o que é vivo e belo e nunca se deixando consumir pelo ódio.Actualmente ainda pratica piano duas horas de manhã e duas de tarde e vive os seus 108 anos com optimismo. Ouvi-la tocar e ouvi-la falar deixam-nos em contacto com o prazer de viver. Uma mulher extraordinária.
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sexta-feira, março 02, 2012
Só as entende quem quer...
(Gerard Castello-Lopes)
As pedras
(Maria Alberta Menéres, Conversas com versos )
As pedras
As pedras falam? pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma história que não calam.
Debaixo dos nossos pés
ou dentro da nossa mão
o que pensarão de nós?
O que de nós pensarão?
As pedras cantam nos lagos
choram no meio da rua
tremem de frio e de medo
quando a noite é fria e escura.
Riem nos muros ao sol,
no fundo do mar se esquecem.
Umas partem como aves
e nem mais tarde regressam.
Brilham quando a chuva cai.
Vestem-se de musgo verde
em casa velha ou em fonte
que saiba matar a sede.
Foi de duas pedras duras
que a faísca rebentou:
uma germinou em flor
e a outra nos céus voou.
As pedras falam? pois falam.
Só as entende quem quer,
que todas as coisas têm
um coisa para dizer.
|
(Maria Alberta Menéres, Conversas com versos )
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