ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti
todos os dentes a quem me disse tal coisa
é que não aguentei
porque não insultou a minha mãezinha e seus hábitos
conjugais como eu estava à espera?
porque não insultou a minha mãezinha afirmando
que todos os homens do globo poderiam ser o meu
paizinho?
porque não me disse que cheirava mal?
porque não me inventou uma corcunda?
porque não aproveitou conjugando as duas
correntes e descreveu minha mãezinha como
um ser desprovido de higiene e com protuberâncias
dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?
chamar-me a mim razoável?
eu que sou extraordinário de tão ruim
eu que estou nos pólos com os iões
eu que faço tudo para me destacar
violo meninas em plena avenida para depois salvar
o mundo
dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto
mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não
gosto
eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade
eu rei dos povos e súbdito dos mendigos
eu sou o contrário do razoável
ninguém me ama com medo de se apaixonar
todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue
que se habituou ao cheiro da glória que não se quer
render á vida para procriar
eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas
o imperador de palácios vazios
o vagabundo de séquito interminável
a divindade a quem faltam promessas
o risco sem medo
a justiça sem pecador
vivo para lá da lei na origem dos decretos
chamar-me a mim razoável quando sou limpo
sem razuras
sem razão
chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão
aos patos quando o mar está revolto
dá-me antes um murro em plena face
resvalando a jeito de me partir o nariz para depois
me tratares
com curativos pintados de bonecos de infância que
estava no armário dos medicamentos
ser razoável é pior que mau
é melhor que bom
e é igual a mais ou menos
ser razoável é nem sequer estar
é estar sem querer
é comer sem gosto
é borrar sem cheiro
é morrer sem choro
é cantar sem alma
é estragar o que está precisamente maduro
(...)
(João Negreiros- A verdade dói e pode estar errada)
Descobri, infelizmente, a poesia de João Negreiros, há pouco mais de duas semanas. Infelizmente, porque cada dia que passa de desconhecimento relativamente a uma obra que se impõe, que "rasga" o espantoso universo poético que temos, para aí encontrar poiso, é um dia perdido. Hoje não poderia deixar de alertar os que aqui vêem para este poema-grito do qual deixo apenas uma amostra. Procurem-no, leiam-no, descubram-no, como eu estou a fazer. E desculpem os leitores e o poeta, por ter deixado, irrazoavelmente este grande "murro" por transcrever na íntegra. João Negreiros está de parabéns!
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