(...)
é esquecer o que acabou de se fazer
é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao
infortúnio
ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que
mau
é melhor que bom
e é igual a qualquer coisa
dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e
me lembrar que no extremo está a virtude
nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas
mais pretas
com mais chifres
e mais longe de casa porque abominam o que é
doméstico
o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a
lamber porque está no fundo da arca para além do rio
mais gelado e do pingo do nariz
chamar-me a mim razoável é chamar ao homem
selvagem e à mulher mulher dele
chamar-me a mim razoável é chamar a vós também
que levais os ouvidos tapados
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para melhor
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para pior
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que estamos a mudar tudo para mais ou menos
exijam o murro em plena face
gritem pelo murro
façam o abaixo-assinado pelo murro
mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face
recebamo-lo com um sorriso com menos dentes
e sangue a escorrer livre
e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto
vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se
venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias
estratosféricas nas lojas de haute-couture
e na impossibilidade de encontrar o equilíbrio
o conforto
o quentinho
o meio
encontramos a humanidade que é feita de defeitos
amores impossíveis
rotas ocasionais
céus carregados
searas em chama
florestas virgens
assomos de bravura
loucuras temporárias
e tranquilidades passagueiras
e tu que levas os dentes partidos só porque alguém
não te quis perfeito sabes agora a importância de
saber
tu que lavas a boca no chafariz na despedida do
incisivo sabes agora ao que vens
ao que venho
ao que vimos
sabes agora que somos
somos tudo
somos completamente tudo
somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se
afogarem pela rapidez do rio
( João Negreiros- A Verdade dói e pode estar errada)
O "Murro" de João Negreiros não mereceria nunca uma incompleta transcrição. Leiam-no até ao fim e depois, voltem a lê-lo uma vez mais. Creio que nunca mais se irão esquecer dele. Tenho quase a certeza.
belo!
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