domingo, maio 23, 2010

o cão de colo que me perdoe...

                                       (Lucien Freud)

(...)                                    
é esquecer o que acabou de se fazer

é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao
infortúnio

ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que
mau

é melhor que bom

e é igual a qualquer coisa

dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e
me lembrar que no extremo está a virtude

nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas

mais pretas

com mais chifres

e mais longe de casa porque abominam o que é
doméstico

o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a
lamber porque está no fundo da arca para além do rio
mais gelado e do pingo do nariz

chamar-me a mim razoável é chamar ao homem
selvagem e à mulher      mulher dele

chamar-me a mim razoável é chamar a vós também
que levais os ouvidos tapados

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para melhor

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para pior

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que estamos a mudar tudo para mais ou menos

exijam o murro em plena face
gritem pelo murro

façam o abaixo-assinado pelo murro

mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face

recebamo-lo com um sorriso com menos dentes
e sangue a escorrer livre

e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto

vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se
venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias
estratosféricas nas lojas de haute-couture

e      na impossibilidade de encontrar o equilíbrio

o conforto

o quentinho

o meio

encontramos a humanidade que é feita de defeitos

amores impossíveis

rotas ocasionais

céus carregados

searas em chama

florestas virgens

assomos de bravura

loucuras temporárias

e tranquilidades passagueiras


e tu     que levas os dentes partidos só porque alguém
não te quis perfeito     sabes agora a importância  de
saber

tu           que lavas a boca no chafariz na despedida do
incisivo     sabes agora ao que vens

ao que venho

ao que vimos

sabes agora que somos

somos tudo

somos completamente tudo

somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se
afogarem pela rapidez do rio

( João Negreiros- A Verdade dói e pode estar errada)

O "Murro" de João Negreiros não mereceria nunca uma incompleta transcrição. Leiam-no até ao fim e depois, voltem a lê-lo uma vez mais. Creio que nunca mais se irão esquecer dele. Tenho quase a certeza.

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