domingo, fevereiro 27, 2011

É esse, e não outro o caminho....

(Aguarelas de Turner-Delfos)                  
Entrarás em Delfos pela porta
secreta- a da serpente. É esse,
e não outro o caminho
para o templo. Junto 
à pedra
da ara colherás
o ouro exausto
do tempo e o sangue
inútil dos sacrifícios. E 
saberás que amor 
e morte são
a outra face do mito.

(Albano Martins - Castália e outros poemas)



terça-feira, fevereiro 22, 2011

Um dia era redonda a primavera

   (Aguarelas de Turner)

Cobra 
 
E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta
defronte do ar exaltado. Também se enredava o outono
nos pulmões das casas. E guardavam-se lentas estrelas
nas arcas, a roupa onde
o brilho se dobra. O inverno fazia
um remoinho nas câmaras, seus buracos expulsavam a espuma
para as ininterruptas paisagens
cinematográficas.
Um dia era redonda a primavera
.................................................

(Herberto Helder)

domingo, fevereiro 20, 2011

em chão de primavera inverno dentro.

   (Aguarelas de Turner)

Preparo uma estação diferente
de quantas teve o tempo, para ver-te;
uma nova mistura, sabiamente,
de névoa, tempestade, sol ardente
em chão de primavera inverno dentro.
Farei versos de nada, e amor de quem
nem corpo tem, e não parece gente;
cego serei, mas lúcido a dizer-te
a verdade calada em cada rima.
Bem na foice da terra, no seu centro,
onde se estende a noite constelada,
levantarei a tenda nupcial;
depois basta que tragas serra e lima
e rompas a grilheta desenhada
na minha humana foto oficial.


(António Franco Alexandre- Duende)

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

Remendo o meu coração....

                                                  (Munch)

 Ponta Seca              


Remendo o meu coração, como a andorinha
Remenda o ninho onde foi feliz.
Artes que o instinto sabe ou adivinha...
Mas fico a olhar depois a cicatriz.


(Miguel Torga- Antologia Poética)

domingo, fevereiro 13, 2011

E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo....

    (Aguarelas de Turner)

Ar Livre

A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.

Leva o arco-iris em cada fio de cabelo.
Em sua pele, madrepérolas hesitantes
pintam leves alvoradas de neblina.

Evaporam-se-lhe os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.


E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.


(Cecília Meireles- Retrato Natural)



quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Preservar...........o instante real de aparição e de surpresa

   (Aguarelas de Turner)

Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa


Sophia de Mello Breyner- Livro sexto