segunda-feira, setembro 27, 2010

Quero campinas sem termo...

                             (Bastien-Lapage)

Deixemos estas cidades…
Oh! a livre natureza,
Que eu não vejo entre os montes
De pedras e de tristeza!

Oh! os largos horizontes!
Oh as campinas floridas!
Vamos lá banhar em luz
Nosso amor e nossas vidas!

Se os horizontes são largos,
Vasto é o meu coração…
Para os meus grandes desejos
Quero infinta prisão!

Todo o ar é pouco ainda
Para a andorinha voar…
Eu quero imenso horizonte
Para poder delirar!

Quero campinas sem termo,
Todo o brilho e toda a cor…
O maior monte é pequeno
Para andar o meu amor!

(Antero de Quental -Idílio sonhado)

quarta-feira, setembro 22, 2010


É de manhã, os pássaros
cantam. De que infinito guardaram
a nostalgia? Enquanto a desconhecida dorme ainda
ao lado da janela. E eu contemplo o cimo das árvores.

(João Camilo- A Ambição sublime)

sexta-feira, setembro 17, 2010

Estamos ainda longe de praticar a democracia


Quando um ditador delirante tem condições para realizar socialmente o seu delírio, não vai para o manicómio, mas é a sociedade que se torna uma manicómio, às vezes quase imperceptivelmente. No caso português, o delírio do não-delírio, a aspiração violenta ao silêncio e à pequenez criaram uma sociedade aparentemente não-delirante- pelo contrário, a mais normal e moral que se podia imaginar. Quando este mecanismo se põe a funcionar é talvez possível justificar epistemologicamente a passagem do inconsciente individual para o plano colectivo ( não necessariamente para um «inconsciente colectivo» copiado do inconsciente individual).
Nestas condições, que aconteceu quando, no fim dos anos 70 e princípios dos anos 80, o português se esforçou por readquirir a subjectividade perdida? Lembremos que o equilíbrio do sistema salazarista das subjectividades e das condições de subjectivação formava uma sólida cobertura claustrofóbica que nem a guerra colonial conseguiu abalar)- ao mesmo tempo elemento de protecção do sistema. Foi, pois, muito natural que nesses anos de procura de subjectividade se tenha voltado a antigos moldes que forneciam segurança e paz interior. Mas a força desses padrões interiorizados  era tal que contaminou as novas condições de subjectivação: a democracia, a cidadania, a acção e expressão livres. Daí a nossa dificuldade actual em nos desviarmos de uma via única, a nossa tendência a não ver senão norma, a criar constantemente zonas sociais claustrofóbicas, a viver a democracia como, parodoxalmente, uma imensa cobertura-véu colectiva, com os seus agentes e mecanismos autoritários, desde os média ao tipo de governação, passando pelo medo da crítica e da liberdade. Estamos ainda longe de praticar a democracia.

( José Gil- Em busca da Identidade- o desnorte)


segunda-feira, setembro 13, 2010

Não vás tantas vezes à estrada...

                                                     

Carta a minha mãe

Estás viva ainda, velhota minha?
Eu vivo também. Saudações, saudações!
Que passe sobre a tua cabana
aquela luz da tarde indescritível!

Escrevem-me que tu, embora o escondas,
te preocupas demasiado comigo,
que vais muita vez até à estrada
com o teu casacão fora de moda.

E a coberto do azul da noite
muitas vezes imaginas a mesma coisa-
que alguém numa rixa de taberna
me enterrou no coração uma navalha...

Nada acontece, mãe! Descansa.
Isso é só a tua imaginação.
Eu não sou um bêbado inveterado
para morrer sem te ver primeiro

Como dantes tão afeiçoado
Sonho apenas em escapar
à minha angústia intranquila
e voltar à nossa pobre casa.

Eu voltarei, quando estender os ramos
na Primavera o nosso jardim branco.
Só te peço que, de madrugada,
não me acordes como oito anos atrás.

Não acordes aquele que esgotou todos os sonhos,
não perturbes aquele que não se realizou-
demasiado cedo o sofrimento e o cansaço
encheram totalmente a minha vida.

E não me ensines orações. Não é preciso!
Não se pode já voltar atrás.
Tu sozinha me és ajuda e conforto,
Tu sozinha me és inefável luz.

Assim, esquece, pois as tuas angústias,
não fiques tão triste por minha causa.
Não vás tantas vezes à estrada
com o teu casacão fora de moda.

(Serguéi Iessénine)

domingo, setembro 05, 2010

Uma culpabilidade profunda incrusta-se em todo o seu ser..

“ O paranoico projecta para os exterior as suas pulsões, atribuindo-as a um objecto, tornando-se ele a vítima dos afectos hostis que emanam agora do objecto e recaem sobre ele: o seu ego tende a diminuir ou encolher. Se extrapolarmos para o caso português, o sujeito «vive-se»
como um zero social e pessoal, um falhado, e queixa-se de tudo e todos-
queixa-se do «país» nunca de si próprio. Abre-se aqui uma esquize, uma fenda no eu, porque ele pertence e não pertence ao «país». Uma culpabilidade profunda incrusta-se em todo o seu ser: culpabilidade por ser o que é, e o que não é, por tudo e por nada, pesada e difusa ao mesmo tempo.
O resultado da acção destas duas forças contraditórias forma um extraordinário sistema de impasses que aprisiona e molda a subjectividade. O eu dilatado tende a embater contra os outros eus que
também introjectaram o mundo – o que levaria a conflitos abertos entre os indivíduos e à erosão da coesão social. Mas como a tendência contrária prevalece, o laço social tece-se em práticas de projecção do «mal», da ameaça que incide nas relações humanas,« no país». Isso mesmo reactiva perversamente o laço social : queixamo-nos do «país», queixamo-nos do «outro» a cada um dos outros reais, que fazem o mesmo. A relação real neurótica que levaria ao conflito é projectada no imaginário, a realidade( dos outros)é desrealizada ( no outro). Assim se cria um plano sonhado a que corresponde um plano prático: o queixume delirante constitui também um modo de justificar todo o pragmatismo  da sobrevivência, o não-cumprimento da lei, a irresponsabilidade, o «desenrasque» a esperteza na acção.”

(José Gil- Em busca da identidade. O desnorte)

quarta-feira, setembro 01, 2010

É a mão que percorre as linhas da frase...

                                 (José Malhoa)

A Poesia                          


É uma luz que desce a escada do poema e
se senta à porta, esperando que o dia entre
para dentro da estrofe.


É uma voz que se encosta ao corrimão
da palavra, e sobe sílaba a sílaba até chegar
ao patamar do verso.


É o eco que nasce de um canto perdido
nos quintais do poema, e atrai pássaros
para dentro desta imagem.


É a mão que percorre as linhas da frase,
como se fossem linhas da vida, e decide
em cada cesura um ponto final.


Como se a poesia nascesse do silêncio, ou
um grito a empurrasse para a vibração
de um último eco.


(Nuno Júdice- Guia de Conceitos Básicos)