quinta-feira, novembro 12, 2009

No Largo das Necessidades havia um terraço...



                               (Palácio da Necessidades)
No Largo das Necessidades havia um terraço, todo em vermelho de tijolo, como se o colorisse uma inquietação transparente. Daquele terraço, via a praça toda à volta, o Palácio das Necessidades com as suas arcadas amarelas, colunas de pássaros regulares como as janelas, e por de trás das janelas homens desejando vitórias e derrotas. Do palácio amarelo, de um lado da praça, escadas longas e ligeiras, feitas de fragmentos cinzentos mesclados de azul em desenhos de verão, de navios e bandeiras, degraus de um patchwork de sereias, como se por debaixo estivesse o mar. Em vez do mar, um jardim, mínimo, porque o Largo das Necessidades é afinal estreito, um pátio com laivos de praça. No jardim, pequeno, há ao abrigo das árvores um banco e outro, mais alguns jogos  montados para crianças. Uma rotunda ao meio, onde podes escrever o que quiseres, e a sombra às seis da tarde. Todo o resto é chuva, nichos, um estrado de madeira do lado de fora de um café, uma cabina telefónica à inglesa, flores de buganvília, fotografias.
O que encontras aqui são os rumores de um mundo que inventa as suas cores, enquanto as pinta. Um realizador que procura a deixa para a protagonista de um filme mudo, um motorista de táxi bêbado que te pergunta o caminho para voltar a casa, uma rapariga que se enfurece porque está apaixonada e ao lado um homem que tem medo dela. Pombos, voo de pássaros e vento quando cai o sol, um jardineiro vestido de Inverno e uma rapariguinha que finge ser Primavera. Na rotunda, alguns velhos jogam um velho jogo de cartas.
Depois chega a noite, a Primavera volta para casa juntamente com todos os demais, excepto nós.
Uma das costelas do jardim, na esquina com a Travessa dos Prazeres, era um prédio cor de morango e mirtilo. Juntos. E a seguir, ao alto, um terraço que parecia feito de inquietação. De um vermelho amargo, forte, obstinado. Excessivo.
Número 22: no terceiro andar ficava a nossa casa. Muito antes de ser a Beirabismo. E na casa havia um corredor, longo como uma memória tenaz.

(Paola D' Agostino- Largo das Necessidades- Fenda Edições)

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