domingo, abril 27, 2014

O que vamos fazer amanhã...

Chagall
Poema para diotima
 
o que vamos fazer amanhã
neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?

amarfanhar-nos numa cadeira
ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina?
o que vamos fazer amanhã

que não seja um ajuste de contas?
o que vamos fazer amanhã
do que mais se sonhou ou morreu?
numa esquina talvez te atropelem,

num relvado talvez me fusilem
o teu corpo talvez seja meu,
mas que vamos fazer amanhã
entre as árvores e a solidão?
                                                                                      

Vasco Graça Moura, in “O Concerto Campestre”
P.S.-A minha homenagem a um homem, (cujo posicionamento político sempre detestei) que nos deixa uma enorme lacuna como poeta e tradutor brilhante. A Cultura fica, de facto, mais pobre.  

quinta-feira, abril 24, 2014

40 ANOS, e parece que foi ontem..

Os sussurros que amarrávamos entre os dentes;
O sonho do que nunca iria acontecer;

A vontade, indomável, de partir;

A cor cinzenta que nos entranhava;

A música que ouvíamos em segredo;
O receio da palavra que escapara;
A guerra que era a glória dos cobardes;
O sonho que Verdade se tornou;
A possibilidade única de Ser.


terça-feira, abril 08, 2014

A ausência, essa ausência assimilada....




Hopper

                               Ausência 
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus
                                                                            [braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'

sábado, abril 05, 2014

Cai a Chuva Abandonada ...

                                           
Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'